Roteiro de Aula

Administração Pública no sistema multiportas?

Arbitragem vs. Consensualidade para disputas da Administração: o Caso Galvão

1. CONHECENDO O BÁSICO

No âmbito do direito privado, a variedade de métodos de composição de conflitos à disposição das partes litigantes, tanto heterocompositivos (como a arbitragem e o processo judicial), quanto autocompositivos (como a negociação, a mediação e a conciliação), levou à concepção de um verdadeiro “sistema multiportas”, isto é, um “complexo de opções, envolvendo diferentes métodos, que cada pessoa tem à sua disposição para tentar resolver um conflito”[1].

No âmbito do direito público, até o início dos anos 2000, parecia não haver um sistema multiportas tão diverso e efetivo, sendo as disputas resolvidas, basicamente, somente por uma única porta: a do processo judicial. Contudo, ao longo dos últimos anos, sobretudo a partir de 2015, com diversas alterações legislativas relevantes para a prevenção e solução de disputas no setor público (dentre elas, destacam-se o novo Código de Processo Civil – Lei 13.105/2015, a reforma da Lei de Arbitragem pela Lei 13.129/2015, a nova Lei de Mediação – Lei 13.140/2015, a reforma da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – Lei 13.655/2018, a nova Lei de Licitações – Lei 14.133/21 etc) houve um avanço considerável no sistema, sendo reconhecido, hoje, que o processo judicial não é mais a única forma de solução de disputas envolvendo a Administração Pública.

No tocante à arbitragem, por exemplo, com a alteração da Lei de Arbitragem ocorrida em 2015, positivou-se a regra de que “a administração pública direta e indireta poderá utilizar-se da arbitragem para dirimir conflitos relativos a direitos patrimoniais disponíveis” (art.1º, §1º da Lei de Arbitragem)[2]. Anteriormente, doutrina e jurisprudência já convergiam no sentido de que o Estado, em suas diferentes esferas e feições, poderia valer-se da arbitragem para dirimir conflitos relativos a direitos patrimoniais disponíveis, mas alguns questionamentos ainda remanesciam, o que dificultava o crescimento da arbitragem no setor público. Por essa razão, foi importante realizar a referida mudança legislativa, para dissipar quaisquer dúvidas que ainda pudessem existir.

E, com efeito, a partir dessa mudança legislativa, a arbitragem experimentou e continua experimentando notável crescimento no setor público[3]. Inclusive, segundo dados da pesquisa “Arbitragem em Números”, realizada por Selma Lemes, Vera Monteiro e Bruno Hellmeister, 318 arbitragens envolvendo a Administração Pública foram iniciadas no ano de 2023 nas principais câmaras arbitrais brasileiras, totalizando mais de R$ 29 bilhões de valor em disputa, um número bastante expressivo[4].

Contudo, a arbitragem, assim como o processo judicial, é um método heterocompositivo, isto é, em que as partes não têm controle direto sobre o resultado final do conflito, que é decidido por terceiro(s) neutro(s) e imparcial(is). A decisão do terceiro é imposta às partes, de forma vinculante e definitiva, com autoridade da coisa julgada. Por tal razão, tanto o processo judicial quanto a arbitragem constituem atividades jurisdicionais. Assim, essa “segunda porta” que foi aberta no sistema de solução de conflitos envolvendo a Administração Pública – a arbitragem – continua enraizada na “cultura da sentença”, na qual, como bem explicado por Kazuo Watanabe, “o que se privilegia é a solução pelo critério do ‘certo ou errado’ (…), sem qualquer espaço para a adequação da solução pelo concurso da vontade das partes, à especificidade de cada caso”[5]. Ainda, métodos heterocompositivos implicam “custos de transação relevantes – diretos (honorários e custas), indiretos (remuneração e tempo dedicado por representantes das partes) ou ocultos (ineficiências, atrasos, perda de foco, custo de oportunidade, risco de imagem, incertezas quanto ao resultado), bem como [por] interferir adversamente na condução dos negócios ou prejudicar relacionamentos”[6].

Diante desse cenário, é natural que surjam questionamentos: será que o processo judicial e a arbitragem são os métodos mais eficientes para todos os tipos de disputas envolvendo a Administração Pública? Haveria outros métodos com uma abordagem mais eficiente, inclusiva e centrada nas reais necessidades das partes, permitindo que estas escolham o caminho mais adequado para a resolução de suas divergências — um caminho que possa variar em amplitude e complexidade, conforme as particularidades de cada conflito? Se a execução de um contrato entre um ente privado e público, principalmente de longa duração, começa a enfrentar desafios que impactam sua viabilidade ou continuidade, as partes não poderiam dialogar sobre essas questões e pensar em soluções consensuais que se ajustem aos seus interesses, sem necessariamente ter um terceiro impondo uma decisão “de cima para baixo”, com custos elevados?

Conforme constatado por Alexandre Santos de Aragão, decisões formadas por consenso tendem a ser menos desrespeitadas do que decisões impostas unilateralmente[7]. Dessa forma, com a consensualidade, poder-se-ia garantir maior eficácia às relações jurídico- administrativas. Nessa mesma esteira, Juliana Bonacorsi de Palma e Vitor Rhein Shirato destacam que a Administração Pública somente estará impedida de celebrar instrumentos consensuais para exercício da função pública em casos em que haja expressa previsão legal em sentido contrário[8]. Assim, entende-se que os chamados direitos patrimoniais disponíveis, conforme definidos acima, podem, sim, ser objeto de deliberação e decisão consensual entre as partes.

Com tudo isso em mente, em 2022, o Tribunal de Contas da União (“TCU”) instituiu uma iniciativa pioneira para o fortalecimento dos meios consensuais de prevenção e solução de disputas dentro do próprio Tribunal, impulsionando com isso a criação de um efetivo sistema multiportas em disputas envolvendo a Administração Pública. Assim, em 2022, foi criada a Secretaria de Controle Externo de Solução Consensual e Prevenção de Conflitos (“Secex Consenso”), com o objetivo de propor, desenvolver, organizar e avaliar propostas para a prevenção e solução consensual de conflitos envolvendo o TCU, gestores públicos e particulares. A Secex Consenso é regulada pela Instrução Normativa nº 91/2022 e constitui um modelo para que outros órgãos públicos, notadamente estaduais e municipais, desenvolvam suas próprias câmaras de promoção de soluções consensuais.

Esse novo sistema multiportas no setor público traz à tona a possibilidade de se obter resultados distintos, conforme o método compositivo adotado: um mesmo caso – como a paralisação de uma obra pública por inadimplemento contratual – pode ter desfechos distintos dependendo do método escolhido: na arbitragem, o resultado tende a ser uma decisão baseada em regras postas, cláusulas contratuais, documentos e provas técnicas; na Secex Consenso, por outro lado, abre-se a possibilidade de as partes buscarem um consenso sobre outros caminhos possíveis para aquela obra pública, como a renegociação e a repactuação, desde que observadas determinadas diretrizes.

2. CONECTANDO-SE COM A REALIDADE JURÍDICA E ADMINISTRATIVA

A consensualidade entre entes públicos e privados é compatível com os princípios da legalidade e da indisponibilidade do interesse público. O STF, por meio do Recurso Extraordinário nº 253.885, entendeu que a Administração Pública pode celebrar acordos sem necessidade de previsão legal expressa, desde que tais acordos não envolvam renúncia de direitos, alienação de bens ou assunção de obrigações extraordinárias. Além disso, afirmou-se que a indisponibilidade do interesse público pode ser mitigada quando o acordo for o meio mais eficaz de atender ao interesse público.

Consenso e legalidade: vinculação da atividade administrativa consensual ao Direito

Por Vitor Rhein Schirato e Juliana Bonacorsi de Palma
(Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado, n.24, dez/jan/fev 2011)

“(…) A respeito da relação entre legalidade e consensualidade, já se manifestou o Supremo Tribunal Federal (STF) no Recurso Extraordinário nº 253.885/STF, de relatoria da Ministra Ellen Gracie, não conhecido pela Primeira Turma da Corte Constitucional por unanimidade de votos em 4 de junho de 2002.

No caso, o Município de Santa Rita do Sapucaí interpôs o recurso extraordinário em pauta em face do acórdão do Tribunal estadual, que manteve sentença homologatória de acordo celebrado entre a Municipalidade e servidores públicos três anos após ajuizamento de ação para pagamento de verbas salariais retidas pelo Poder Público.

Em sua alegação, a recorrente aduziu que:

‘O princípio da legalidade, aplicado à Administração, explicita a subordinação da atividade administrativa à lei, e, portanto, não havendo lei a autorizar a transação, tal não poderia ter sido celebrada, ainda mais porque o Poder Público é mero executor do interesse público, que é fixado em lei, não podendo dele dispor’.

O caso se mostra especialmente interessante na medida em que circunda duas grandes questões que se encontram na pauta do Direito Administrativo, quais sejam: (i) os acordos administrativos necessitam de previsão legal autorizativa expressa para serem validamente celebrados?; (ii) a celebração de acordos pela Administração Pública afronta o princípio da indisponibilidade do interesse público?

Apoiado no acórdão recorrido, o STF extraiu a seguinte ratio decidendi: a previsão autorizativa legal expressa apenas será imprescindível à celebração de acordos pela Administração Pública quando o conteúdo dos mesmos importar em renúncia a direitos, alienação de bens ou assunção de obrigações extraordinárias pela Administração.

No julgamento, como o objeto da transação — pagamento de salários retidos — fora considerado “mero ressarcimento decorrente de responsabilidade administrativa [por parte da Administração Pública]”, sem caracterizar renúncia de direitos, alienação de bens ou assunção de obrigações extraordinárias pela Administração, o STF afastou a tese da transgressão ao princípio da legalidade pela transação celebrada pelo Município de Santa Rita do Sapucaí e pelos servidores.

Quanto à segunda questão, atinente ao princípio da indisponibilidade do interesse público, o STF posiciona-se no sentido de permitir a mitigação do aludido princípio nas situações em que a solução elegida pela Administração se mostrar como a “melhor” a satisfazer o interesse público correspondente. A ratio decidendi acerca desse ponto pode assim ser sintetizada: a indisponibilidade do interesse público pode ser atenuada quando a Administração Pública puder melhor atender à ultimação desse interesse.

O acordo entre a Municipalidade e os servidores públicos foi entendido como o mecanismo mais rápido e eficaz à consecução do interesse público pela Primeira Turma do STF, pois, com base no parecer do Ministério Público, o acordo findou antecipadamente um processo cuja decisão condenatória já era certa, além de evitar que o Município arcasse com o ônus da sucumbência.

Ademais, o acordo foi vislumbrado como um ato de invalidação do ato de retenção das verbas salariais pela Municipalidade questionado em juízo, o qual fora considerado ilegal pelo STF. Uma vez que a invalidação dos atos ilegais praticados pela Administração Pública não exige qualquer formalidade especial e nem prazo determinado, concluiu-se pela validade da celebração de acordo com o intuito de invalidação do ato ilegal.

Para além do debate correspondente à viabilidade de a Administração Pública celebrar acordos sem que, com isso, incorra em ofensa aos princípios da legalidade e da indisponibilidade do interesse público, um terceiro ponto deve ser suscitado acerca dos atos administrativos bilaterais a partir do leading case em análise, qual seja, a questão da legitimidade de o Poder Judiciário analisar o mérito dos acordos consensuais.

Depreende-se do acórdão que o recurso não foi conhecido exatamente por incorrer em reexame de matéria fático-probatória, defeso ao STF pela Súmula nº 279/STF, nos termos do voto da Ministra Ellen Gracie:

‘[A]ssim, tendo o acórdão concluído pela não onerosidade do acordo celebrado, decidir de forma diversa implicaria o reexame fático-probatório, o que é vedado nesta instância recursal (Súmula 279/STF). Ante o exposto, não conheço do recurso’.

Contudo, o STF não coloca qualquer óbice à análise da onerosidade dos acordos celebrados pela Administração Pública com os particulares pelas instâncias inferiores como critério de validade dos mesmos. Caberia ao Judiciário ponderar sobre o mérito dos atos administrativos bilaterais?”

Instrução Normativa TCU n° 91/2022

“Institui, no âmbito do Tribunal de Contas da União, procedimentos de solução consensual de controvérsias relevantes e prevenção de conflitos afetos a órgãos e entidades da Administração Pública Federal.

(…)

Art. 1º A realização de procedimentos, no âmbito do Tribunal de Contas da União (TCU), voltados para a solução consensual de controvérsias relevantes e prevenção de conflitos afetos a órgãos e entidades da Administração Pública Federal, em matéria sujeita à competência do TCU, observará o disposto nesta Instrução Normativa (IN).(NR)(Instrução Normativa-TCU nº 92, de 25/1/2023)

Art. 2º A solicitação de solução consensual de que trata esta IN poderá ser formulada:

I – pelas autoridades elencadas no art. 264 do Regimento Interno do TCU;

II – pelos dirigentes máximos das agências reguladoras definidas no art. 2º da Lei nº 13.848, de 25 de junho de 2019; e

III – por relator de processo em tramitação no TCU.

(…)

Art. 5º Compete ao Presidente do TCU, após a análise prévia da SecexConsenso, decidir sobre a conveniência e a oportunidade da admissibilidade da solicitação de solução consensual nos termos desta IN, levando em consideração:

I – a competência do TCU para tratar da matéria;(NR)(Instrução Normativa-TCU nº 92, de 25/1/2023)

II – a relevância e a urgência da matéria; (NR)(Instrução Normativa-TCU nº 92, de 25/1/2023)

III – a quantidade de processos de SSC em andamento; e (NR)(Instrução Normativa-TCU nº 92, de 25/1/2023)

IV – a capacidade operacional disponível no Tribunal para atuar nos processos de SSC. (NR) (Instrução Normativa-TCU nº 92, de 25/1/2023)

(…)”

Ainda, a Instrução Normativa nº 91/2022, estabelece o fluxo da solução consensual de conflitos, demonstrado na figura abaixo, elaborada pela FGV Justiça:

FGV JUSTIÇA. Consensualidade no âmbito do Tribunal de Contas da União [livro eletrônico]: estudos de caso da Secexconsenso / coordenação Luis Felipe Salomão, Elton Leme, Benjamin Zymler. 1. ed. Rio de Janeiro: Fundação Getulio Vargas, 2024. Disponível em: https://justica.fgv.br/sites/default/files/2024-12/estudo_secexconsenso.pdf.

Até junho de 2025, 40 processos haviam sido submetidos à Secex Consenso desde sua fundação. Conforme dados do Portal do TCU (https://portal.tcu.gov.br/solucao-consensual), o panorama atual dos processos é o seguinte:

Para fins da presente aula, serão utilizados como exemplos os conflitos envolvendo a Agência Nacional de Transportes Terrestres (“ANTT”).

Segundo informações públicas disponíveis no Portal do TCU, a ANTT já pleiteou a instauração de 12 processos na Secex Consenso:

  • 006.124/2025-9 – 2025 – Contrato de concessão da Ferrovia Transnordestina (em exame de admissibilidade)
  • 000.329/2025-8 – 2025 – Contrato de concessão da Ferrovia Malha Oeste (não admitido)
  • 024.992/2024-0 – 2024 – Contrato de concessão com a Concebra (admitido e está na Comissão de Solução Consensual)
  • 024.670/2024-3 – 2024 – Contrato de concessão da Rodovia BR-163 – Via Brasil (admitido e está na Comissão de Solução Consensual)
  • 018.326/2024-7 – 2024 – Contrato de concessão da Rodovia BR-116/PR/SP – Regis Bittencourt (Comissão concluída, em trâmites internos)
  • 016.032/2024-1 – 2024 – Concessão da Rodovia Fernão Dias/MG (proposta de acordo submetida para decisão do Plenário)
  • 036.366/2023-4 – 2023 – Contrato de concessão Rodovia BR 324/116/BA (houve acordo na Comissão e foi homologado pelo Plenário – Acordão n. 199/2025)
  • 036.368/2023-7 – 2023 – Contrato de concessão da Rodovia BR 101/RJ (houve acordo na Comissão e foi homologado pelo Plenário – Acordão n. 2318/2024)
  • 033.777/2023-3 – 2023 – Contrato de concessão da Rodovia BR 163/MS (houve acordo na Comissão e foi homologado pelo Plenário – Acordão n. 2434/2024)
  • 033.444/2023-4 – 2023 – Contrato de concessão da Rodovia BR 101/ES/BA (houve acordo na Comissão e foi homologado pelo Plenário – Acordão n. 1996/2024)
  • 000.855/2023-5 – 2023 – Contrato de concessão da ferrovia Malha Sul (houve acordo na Comissão e foi homologado pelo Plenário – Acordão n. 2514/2023 e n. 857/2024)
  • 000.853/2023-2 – 2023 – Contrato de concessão da ferrovia Malha Paulista (houve acordo na Comissão e foi homologado pelo Plenário – Acordão n. 2472/2023)

Esses processos representam 30% do total dos processos na Secex Consenso.

Além disso, mais recentemente, a ANTT criou uma câmara própria de negociação e resolução de conflitos, denominada de COMPOR e instituída no final de 2023 por meio da Instrução Normativa Conjunta nº 1:

Instrução Normativa Conjunta n° 1/2023

Art. 1º Fica instituída a Câmara de Negociação e Solução de Controvérsias da Agência Nacional de Transportes Terrestres (CNSC-ANTT), com a finalidade de conduzir os procedimentos de negociação para a prevenção e solução consensual de controvérsias envolvendo a Agência e as entidades reguladas, relativas à gestão de contratos de concessão, permissão e arrendamento, nos limites das suas competências legais.

(…)

Art. 4º Podem ser submetidas ao Procedimento de Negociação e Solução de Controvérsias questões relacionadas à interpretação, aplicação e alteração de cláusulas contratuais, dispositivos legais ou regulamentares em casos específicos que requeiram uma decisão da ANTT no contexto da relação jurídica estabelecida nos contratos de concessão, permissão e arrendamento, bem como divergências de natureza eminentemente técnica que envolvam direitos patrimoniais disponíveis.

§ 1º Demandas já submetidas à esfera judicial ou arbitral podem ser objeto do Procedimento de Negociação e Solução de Controvérsias, desde que observado o Capítulo XI desta Instrução Normativa.

(…)

Art. 5º O Procedimento de Negociação e Solução de Controvérsias objetiva auxiliar a ANTT na construção da melhor decisão administrativa, ampliar a segurança jurídica e a eficiência no cumprimento dos contratos e reduzir custos de transação na celebração de acordos judiciais ou arbitrais.

(…)

Art. 6º Não serão admitidas propostas de solução consensual que tenham por objeto:

I – análise de defesa da entidade regulada em autuação promovida pela ANTT ou recurso eventualmente interposto contra decisão da Agência;

II – processos com decisão administrativa definitiva de mérito, salvo quando passível de revisão por meio de autotutela administrativa ou se a questão estiver submetida a processo judicial ou arbitral;

III – demandas que já estejam sendo objeto de análise em órgão de consenso da Administração Pública Federal; e

IV – discussões teóricas, estabelecimento de teses e consultas jurídicas abstratas, exceto quando necessárias à análise do caso concreto

(…)

Art. 10. O Procedimento de Negociação e Solução de Controvérsias terá autuação específica e será instaurado por deliberação da Diretoria Colegiada da ANTT, de ofício ou por solicitação da Superintendência competente.

(…)

§ 3º A entidade regulada interessada poderá apresentar pedido de abertura de Procedimento de Negociação e Solução de Controvérsias à Superintendência competente da ANTT, a qual, após avaliação da proposta, submeterá à Diretoria Colegiada, propondo seu acolhimento ou rejeição.

Art. 14. (…)§ 4º Serão priorizadas demandas que não sejam objeto de litígio judicial e/ou arbitral e que sejam relacionadas a contratos cujas concessionárias apresentem maior conformidade regulatória, levando em consideração, ainda:

I – a relevância e urgência da matéria e o potencial de replicação de demandas;

II – a quantidade de pontos controversos consolidados em demanda única;

III – a ordem cronológica dos pedidos;

IV – o potencial envolvimento de terceiros, públicos ou privados, na controvérsia, de forma direta ou indireta; e

V – o volume de Procedimento de Negociação e Solução Consensual em andamento, de modo a não afetar a capacidade operacional da ANTT.

(…)

Art. 18. A Comissão de Negociação terá 40 (quarenta) quarenta dias úteis, contados da data da reunião inicial, para elaborar proposta de Solução Consensual, sendo possível a prorrogação desse prazo uma única vez, por igual período, mediante solicitação fundamentada do coordenador da Comissão de Negociação ao Procurador-Geral da ANTT.”Es

Com a instituição da COMPOR, a ANTT passou a ter a possibilidade de conduzir internamente os processos consensuais, além de também poder recorrer à Secex Consenso. Nesse sentido, é fundamental avaliar, em cada caso, as vantagens e desvantagens associadas a cada uma dessas opções. De todo modo, essa ampliação de instrumentos e caminhos consensuais institucionais reflete o esforço da agência em diversificar os mecanismos de prevenção e solução de disputas, adequando sua atuação à complexidade das relações contratuais nesse setor regulado.

Ainda que, mais recentemente, os métodos consensuais estejam despertando maior atenção da ANTT, ela também possui a tradição de recorrer a métodos heterocompositivos quando necessário, como é o caso da arbitragem, por exemplo. Conforme informações disponíveis em domínio público, recentemente, a referida agência participou de um procedimento arbitral perante a Câmara de Comércio Internacional (“CCI”) contra a Concessionária de Rodovias Galvão BR-153 SPE S.A (Procedimento Arbitral nº 23433/GSS).

Vera Monteiro e Jolivê Rocha sintetizaram o caso da seguinte forma:

Caso Galvão

“O Caso Galvão, como ficou conhecido, envolveu disputa arbitral entre uma concessionária de rodovia federal e o poder concedente (União Federal, representada pela ANTT). A sentença parcial foi favorável à ANTT e confirmou que a inexecução do contrato foi causada pela concessionária, sendo legítima a caducidade declarada pelo poder concedente.

O histórico do caso remete à licitação promovida pela União Federal em 2014, por intermédio da ANTT, para a concessão da exploração da BR-153/TO/GO, realizada no âmbito da 3ª etapa do PROCROFE (Programa de concessões de rodovias federais) e vencida pela Concessionária de Rodovias Galvão BR-153 SPE S/A. Com a assinatura do Contrato de Concessão ANTT nº 01/2014, ela se tornou responsável pela exploração de uma das principais rodovias de integração nacional, formada por um trecho de quase 625 km entre Aliança de Tocantins (TO) e Anápolis (GO), pelo prazo de 30 anos.

Em 2016, a concessionária foi acusada pelo poder concedente de inexecução contratual (basicamente, de não realizar os investimentos contratados, como a realização de obras de duplicação, necessárias para o início da cobrança de pedágio), o que acabou levando à realização de processo administrativo e à aplicação de multas, bem como à extinção do contrato, com a declaração da caducidade da concessão, cujo decreto federal foi publicado em 15 agosto de 2017.

Em fevereiro de 2018, a concessionária requereu a abertura do procedimento arbitral com a alegação de que os obstáculos que enfrentou e que levaram à inexecução do contrato não teriam sido provocados por ela, de modo que não poderia ter sido penalizada com multas e extinção do contrato. Em síntese, afirmou que suas dificuldades financeiras e a não obtenção do financiamento necessário para cumprimento das obrigações contratuais teria sido resultado de fatores alheios a ela. Alegou que o BNDES não teria cumprido a promessa de financiamento nos termos anunciados, além da crise econômica de 2014, que teria sido determinante para a não obtenção de recursos em outras fontes. Na sua visão, o rompimento contratual seria decorrência de caso fortuito ou força maior, além de fato da administração. Sustentou a ausência de inadimplemento contratual imputável a ela.

A ANTT e a União, por sua vez, alegaram que a não obtenção do financiamento era risco contratualmente alocado à concessionária. A União ainda formulou pedido reconvencional, fundado nos prejuízos que alegou ter sofrido em razão da extinção antecipada do contrato por culpa da concessionária, os quais incluiriam custos de manutenção do trecho concedido, lucros cessantes pela perda de receita em razão da não ocorrência do fato gerador tributário, custos de contratação de novos estudos de viabilidade para nova licitação, além de danos ao meio ambiente e ao usuário.

As partes solicitaram ao tribunal a bifurcação do procedimento para que fosse prolatada sentença parcial que decidisse sobre a questão relativa à responsabilidade pela inexecução do contrato de concessão e, consequentemente, pela validade da caducidade do contrato. O tribunal decidiu pela bifurcação e entendeu que a prova oral pleiteada pela concessionária era dispensável para a solução da questão.

Sobre o pleito reconvencional, de caráter indenizatório, a concessionária alegou que o pedido de ressarcimento de danos coletivos, ambientais e à arrecadação frustrada de tributos envolveria direitos indisponíveis e não patrimoniais e, por isso, não arbitráveis. Em resposta, a União abriu mão desses pedidos.

Em síntese, a sentença parcial proferida, de 10 de setembro de 2020, reconheceu a responsabilidade exclusiva da concessionária pela inexecução do contrato, declarou a validade do ato de declaração de caducidade do contrato de concessão e condenou-a ao pagamento de multas administrativas e outros valores devidos, além de perdas e danos. Não houve impugnação ou controvérsia trazida pelas partes acerca da arbitrabilidade do tema. Mesmo assim, a sentença parcial reconheceu expressamente que “a arbitrabilidade objetiva, no caso, decorre da evidente natureza patrimonial desses pedidos, diretamente relacionados ao Contrato firmado” (§215 da sentença arbitral parcial).

A sentença ainda condenou a União a indenizar a concessionária por eventuais investimentos vinculados a bens reversíveis não amortizados (o poder concedente havia negado a ela direito à indenização por entender não haver investimentos vinculados a bens reversíveis a serem amortizados). A metodologia de apuração e liquidação dos valores ficaram para ser definidos em uma segunda fase do procedimento arbitral. Os três árbitros decidiram de forma unânime e, com isso, confirmaram a extinção antecipada do contrato e a retomada da concessão da rodovia, viabilizando a realização de nova licitação.”

Os pontos de discussão no Caso Galvão podem ser organizados em quatro categorias: (i) responsabilidade pela inexecução contratual; (ii) a extinção do contrato de concessão por caducidade; (iii) pagamento de indenização pelos prejuízos causados e investimentos não amortizados; e (iv) arbitrabilidade de danos coletivos e ambientais e arrecadação de tributos.

Conforme exposto acima, o desfecho desse caso foi a extinção do contrato sem a conclusão da obra, o que acarretou novos custos para a Administração Pública.

Nesse contexto, um dos questionamentos que poderia ser feito é: se esse mesmo caso fosse objeto de um diálogo consensual no âmbito da Secex Consenso, o desfecho seria diferente? Recorda-se aqui o que bem disse Marcelo Perlman, os conflitos “se bem geridos, podem ser fonte de aprendizado, enriquecimento de ideias e perspectivas, inovação, e melhor tomada de decisões”[9].

O objetivo dessa aula não é esgotar a análise dos métodos consensuais envolvendo a Administração Pública, mas oferecer uma oportunidade de diálogo sobre os diferentes caminhos em torno da prevenção de disputas em relações de longa duração envolvendo a Administração Pública (com foco na Secex Consenso). Busca-se que os meios de prevenção e resolução sejam adaptados tanto à natureza específica da disputa[10], quanto à cultura dos envolvidos, de modo que não se apresentem apenas como uma alternativa ao processo judicial, mas como instrumentos verdadeiramente adequados às necessidades das partes.


[1] LORENCINI, Marco Antônio G. L., “Sistema Multiportas”: Opções para tratamento de conflitos de forma adequada. In: Negociação, mediação, conciliação e arbitragem. Coord. Carlos Alberto de Salles, Marco Antônio Garcia Lopes Lorencini, e Paulo Eduardo Alves da Silva. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 42.

[2] Conforme definido pelo STJ por meio do Recurso Especial no 1.331.100/2016[2], na linha de outros precedentes da mesma Corte, esses direitos precisam ser passíveis de (i) renúncia, transação, alienação e transmissão, bem como (ii) valoração pecuniária.

[3] Conforme estatísticas do Núcleo Especializado de Arbitragem da Advocacia-Geral da União: https://www.gov.br/agu/pt-br/composicao/cgu/cgu/neadir/estatisticas-de-atuacao, acesso em 15 de junho de 2025.

[4] https://canalarbitragem.com.br/wp-content/uploads/2024/12/Arbitragem-em-Numeros-2024.pdf, acesso em 15 de junho de 2025.

[5] WATANABE, Kazuo. A cultura da sentença e a cultura da pacificação. In: MORAES, Mauricio Zanoide; YARSHEL, Flavio Luiz (coords.). Estudos em homenagem à Professora Ada Pellegrini Grinover. São Paulo: DJP Editora, 2005.

[6] PERLMAN, Marcelo. Prevenção de Disputas Empresariais – A Visão dos Advogados e dos Escritórios. In: Prevenção de Disputas. Coord. Rafael Francisco Alves e Amanda Federico Lopes. São Paulo: Quartier Latin, 2024, pp. 76-77.

[7] ARAGÃO, Alexandre Santos de. O marco regulatório dos serviços públicos. Revista Interesse Público, ano 5, n. 27, p. 79.

[8] SHIRATO, Vitor Rhein; PALMA, Juliana Bonacorsi de. Consenso e Legalidade: vinculação da atividade administrativa consensual ao direito. Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado, n.24, dez/jan/fev, 2011

[9] PERLMAN, Marcelo. Prevenção de Disputas Empresariais – A Visão dos Advogados e dos Escritórios. In: Prevenção de Disputas. Coord. Rafael Francisco Alves e Amanda Federico Lopes. São Paulo: Quartier Latin, 2024, p. 77.

[10] LORENCINI, Marco Antônio Garcia Lopes. “Sistema Multiportas”: Opções para tratamento de conflitos de forma adequada. In: Negociação, mediação, conciliação e arbitragem. Coord. Carlos Alberto de Salles, Marco Antônio Garcia Lopes Lorencini, e Paulo Eduardo Alves da Silva. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 45.

3. DEBATENDO

  1. Qual é o papel da Secex Consenso dentro do TCU e como ela se distingue dos demais meios de prevenção e solução de disputas?
  2. A escolha dos meios de prevenção e solução de disputas possui natureza estratégica. Em que cenários você escolheria a arbitragem e em que cenários você escolheria mecanismos consensuais? Justifique sua resposta.
  3. Quais são as vantagens e as desvantagens de se buscar uma composição consensual via Secex Consenso?
  4. Quais são as diferenças entre a Secex Consenso e a COMPOR?
  5. Faça uma pesquisa para delimitar as plataformas e programas de resolução consensual na Administração Pública nas administrações federais, estaduais e municipais. Quais temas estão disciplinados nesses programas. Há temas que você considera importantes e que não estão presentes nessas normas?
  6. Sobre o caso Galvão:
  1. O Caso Galvão seria admitido na Compor? Justifique.
  2. O Caso Galvão seria admitido na Secex Consenso? Justifique.
  3. Em caso afirmativo para a pergunta anterior, quais seriam os possíveis desfechos do Caso Galvão na Secex Consenso? Considere cada um dos grupos envolvidos (TCU, ANTT e Concessionária de Rodovias Galvão), delimite as perspectivas, habilidades e competências dos grupos, os pontos que seriam discutidos e possíveis arranjos de acordo (caso haja). Lembre-se: o acordo pode ser parcial, isto é, de alguns tópicos. Se considerarem necessário obter mais informações do caso, os alunos podem visitar o site: https://www.gov.br/agu/pt-br/composicao/cgu/cgu/neadir/casos-de-arbitragem-2/caso-galvao
  • Caso a atividade envolva um grupo de alunos, organize-os em três grupos: TCU, ANTT e Concessionária de Rodovias Galvão. Cada grupo deverá se reunir separadamente para analisar os pontos em disputa sob a perspectiva do ente que representa. Após esse momento de preparação, promova uma discussão conjunta, em que os grupos apresentarão seus argumentos, contrapontos e justificativas, verificando se seria possível chegar a um acordo.

Sugestão de Dinâmica:

Etapa 1 – Preparação em Subgrupos
Cada grupo (TCU, ANTT, Concessionária) prepara sua posição inicial, identifica riscos, limites e possíveis concessões.

Possíveis perguntas para os alunos:

  • Quais as posições iniciais (o que querem), os interesses (por que querem), e possíveis zonas de acordo?
  • Quais competências e limitações institucionais devem ser levadas em conta?
  • Quais perguntas fazer para as demais partes?
  • Como posso melhorar o diálogo durante a negociação?
  • Como posso manter uma boa relação para a possível continuidade do contrato ou, eventualmente, novas parcerias?
  • Quais seriam os pontos controvertidos e as alternativas para tratá-los consensualmente?
  • Como seria um acordo possível, ainda que parcial? Quais tópicos poderiam permanecer pendentes ou seguir outro caminho (ex: judicialização)?

Etapa 2 – Rodada de Negociação

Reúnam-se para discutir possíveis caminhos de consenso.

Dicas para os alunos:

  • Organizem uma agenda de discussão
  • Definam os interlocutores antecipadamente
  • Estejam “presentes” na negociação
  • Escutem ativamente e empaticamente
  • Demonstrem atenção genuína ao que a outra parte está falando
  • Verifiquem se realmente entenderam o que os outros grupos falaram (utilização de resumos e paráfrase)
  • Façam perguntas

Etapa 3 – Redação de Minuta de Acordo

 Os grupos, juntos, redigem uma minuta de acordo parcial ou total, apontando os tópicos solucionados e os que permaneceram sem consenso.

Etapa 4 – Debate Final e Reflexão

Reflexão orientada:

  • O que facilitou ou dificultou a negociação?
  • O que aprenderam sobre a atuação de cada grupo? Quais as diferenças entre eles?
  • O consenso foi possível sem comprometer o interesse público?

4. APROFUNDANDO

ARAGÃO, Alexandre Santos de. O marco regulatório dos serviços públicos. Revista Interesse Público, ano 5, n. 27, p. 79 et seq.

FERRAZ, Luciano. Controle e consensualidade: fundamentos para o controle consensual da Administração Pública. 2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2020.

FGV JUSTIÇA. Consensualidade no âmbito do Tribunal de Contas da União [livro eletrônico]: estudos de caso da Secexconsenso / coordenação Luis Felipe Salomão, Elton Leme, Benjamin Zymler. 1. ed. Rio de Janeiro: Fundação Getulio Vargas, 2024. Disponível em: https://justica.fgv.br/sites/default/files/2024-12/estudo_secexconsenso.pdf. Acesso em: 4 jun. 2025.

LEMES, Selma. Arbitragem na Administração Pública: fundamentos jurídicos e eficiência econômica. São Paulo: Quartier Latin, 2007.

LORENCINI, Marco Antônio Garcia Lopes. “Sistema Multiportas”: opções para tratamento de conflitos de forma adequada. In: SALLES, Carlos Alberto de; LORENCINI, Marco Antônio Garcia Lopes; SILVA, Paulo Eduardo Alves da (coord.). Negociação, mediação, conciliação e arbitragem. Rio de Janeiro: Forense, 2020.

MONTEIRO, Vera; ROCHA, Jolivê. Caducidade em concessão e arbitragem. In: JUSTEN, Monica Spezia; PEREIRA, Cesar; JUSTEN NETO, Marçal; JUSTEN, Lucas Spezia (coord.). Uma visão humanista do Direito: homenagem ao Professor Marçal Justen Filho. Belo Horizonte: Fórum, 2025. v. 3, p. 945-956.

PALMA, Juliana Bonacorsi. O TCU e sua consensualidade controladora: método adequado de solução de conflitos ou expansão de competências controladoras? JOTA, 28 jun. 2023. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/controle-publico/o-tcu-e-sua-consensualidade-controladora. Acesso em: 7 jun. 2025.

PORTO, Stela Hunhne. Celebração de acordos pela Administração Pública: incentivos, riscos e parâmetros. 2022. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2022.

ROGOGINSKY, Felipe Salathé. Controle consensual ou controle por acordo? Perspectivas para os processos de solicitação de solução consensual em contratações públicas. In: LIMA, Amanda Faria; MEDEIROS, Klei (org.). Perspectivas sobre o controle da infraestrutura. São Paulo: Transparência Internacional, 2024.

SALLES, Carlos Alberto de Arbitragem em contratos administrativos. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2011.

SCHIRATO, Vitor Rhein; PALMA, Juliana Bonacorsi de. Consenso e legalidade: vinculação da atividade administrativa consensual ao direito. Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado, n. 24, dez./jan./fev. 2011.