Roteiro de Aula

Estamos seguros dentro da nossa mente?

Direito Administrativo e os desafios da regulação da proteção dos neurodireitos

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1. CONHECENDO O BÁSICO

O sistema econômico capitalista passou por diversas fases, notadamente, capitalismo mercantil, industrial, financeiro e informacional. Atualmente, estamos avançando em um capitalismo marcado pela economia de dados ou pela economia de plataformas digitais, referida por Shoshana Zuboff como capitalismo de vigilância (Zuboff, 2020). Entre os “diversos capitalismos”, tivemos avanços disruptivos por meio de revoluções tecnológicas. Todo avanço tecnológico disruptivo impõe grandes desafios ao Estado e, especialmente, aos Poderes Legislativo e Executivo, no reconhecimento e na disciplina indispensável à tutela dos novos direitos. Desde a revolução da máquina a vapor até a inteligência artificial, estão em evidência períodos de reestruturação da organização do trabalho, do modo de produção e do próprio funcionamento da economia, o que atinge as relações sociais e, consequentemente, demanda transformação do Direito.

Durante essas transformações disruptivas, com o envolvimento e a influência de poderosos agentes econômicos, há uma tendência de se priorizarem os empreendimentos em detrimento da proteção e efetiva tutela de direitos humanos e fundamentais, movimento que, para ser equilibrado, demanda a adequada intervenção do Estado, seja pelo reconhecimento de novo direito, mas, sobretudo, pela criação de uma disciplina legal associada a uma configuração regulatória para que haja limites e segurança quanto aos efeitos e às externalidades produzidas por tais tecnologias.

Em meio a isso, há uma outra revolução em curso, que é alavancada pelas neurotecnologias. De tiaras que avisam ao professor quando o aluno não está prestando atenção até chips implantados no cérebro de uma pessoa que permitem dar comandos a uma máquina a partir do “pensamento”, há uma transformação tecnológica em acelerado curso. Isso significa que grandes empresas de tecnologia poderão “ler os pensamentos” de seus clientes e, eventualmente, interferir em suas ondas cerebrais, como é a proposta de uma das empresas para tratar transtornos como depressão, ansiedade etc., a partir da interferência na eletricidade cerebral. Tal situação abre as portas de acesso ao que, em outro momento histórico, nos era mais íntimo e privado, isto é, à nossa mente, gerando indagações sobre se, em face da expansão do uso das neurotecnologias, estaremos seguros dentro de nossas mentes?

As neurotecnologias são estruturadas para interagir com o sistema nervoso, especialmente com o cérebro, para monitorar, decodificar dados neurais, estimular e melhorar as funções. São exemplos de neurotecnologias as interfaces cérebro-computador (BCI), a estimulação cerebral profunda (DBS), as neuropróteses, os dispositivos de neuroimagens avançados e os chips neurais. Note-se que nem toda neurotecnologia é invasiva, como é um chip implantado, mas ela acaba sendo capaz de, ao monitorar padrões neurais, decifrar/decodificar preferências, intenções ou pensamentos. Também acabam tendo potencial de interferir em nossas memórias, comportamentos ou decisões, sendo relevante que a regulação proteja as pessoas da manipulação mental por neurotecnologias.

É nesse cenário que surgiu o conceito de neurodireitos, termo criado pelos professores italiano e argentino Marcello Ienca e Roberto Andorno. Os neurodireitos, nesta perspectiva, desdobram-se em: (1) direito à privacidade mental, envolvendo a proteção dos dados cerebrais, de pensamentos e informações mentais contra acesso não autorizado, coleta, armazenamento ou comercialização; (2) direito à integridade mental, com proteção contra intervenções indesejadas no cérebro, manipulações tecnológicas, neuro-hacking e indução de pensamentos ou comportamentos; (3) direito à liberdade cognitiva, que garanta a liberdade de pensamento, de formação de ideias e de autodeterminação mental, protegendo contra qualquer forma de coerção tecnológica; (4) direito à continuidade psicológica e à identidade pessoal, que tutela a estabilidade da identidade pessoal, impedindo que intervenções tecnológicas causem alterações na percepção de si; e (5) direito ao acesso equitativo às neurotecnologias, que assegura o acesso a tecnologias que aprimoram capacidades cognitivas ou tratam doenças que não gerem desigualdades ou discriminações (Ienca, Andorno, 2017).

Como a sociedade atual, com as transformações tecnológicas, oferece novos riscos, é imprescindível haver novas proteções, o que se dá pela positivação de novos direitos. Como se vê, tal como a IA, a neurotecnologia cria não apenas indubitável progresso, mas também a possibilidade do seu mau uso que tem potencial de atingir uma série de direitos humanos basilares. Por conseguinte, o Estado deve possuir uma disciplina jurídica e regulatória apta a impedir, prevenir ou remediar o aviltamento de direitos que decorram do uso distorcido ou descuidado das neurotecnologias. Assim, não basta apenas positivar, isto é, transformar direitos em pedaços de papeis, mas se deve avançar para garantir uma proteção efetiva por meio da adequada regulação.

A efetivação da tutela de direitos que estão escritos depende, no mais das vezes, do Poder Executivo e das agências, que atuam concretamente sobre a situação jurídica para resolvê-la (Palma, 2014). Em exemplo prático: quando um restaurante descumpre normas de higiene, temos os textos normativos positivos em papel (um conjunto de leis e regulamentos) assegurando o direito à saúde e à segurança do consumidor (previstos na Constituição Federal, no Código de Defesa do Consumidor e em resoluções da ANVISA), que foi notoriamente insuficiente para, por si só, garantir a qualidade do serviço. Então, há um outras leis, como a legislação sanitária, pela Lei nº 6.437/77, ditando que o estabelecimento infrator estará sujeito a sanções administrativas, que podem ir de uma multa até a interdição do local, sendo mobilizados órgãos e agentes para garantia da efetividade dos dispositivos previstos.

Como se vê, a determinação do legislador em si não soluciona qualquer problema. Para que se proteja a saúde pública de forma preventiva e corretiva, é necessária a atuação concreta da Vigilância Sanitária, exercendo poder de polícia. No caso de condução de ensaios com dispositivos como implantes, a ANVISA possui a RDC 837, de 13 de dezembro de 2023, que define o que é dispositivo médico, incluindo implante, software, material ou outro artigo, destinado pelo fabricante a ser usado, isolado ou conjuntamente, em seres humanos, para algum dos seguintes propósitos médicos específicos, e cuja principal ação pretendida não seja alcançada por meios farmacológicos, imunológicos ou metabólicos no corpo humano, mas que podem ser auxiliados na sua ação pretendida por tais meios. É essa estrutura, um braço da Administração Pública, que fiscaliza e, se necessário, aplica as sanções previstas no “papel”. Portanto, vê-se que a efetivação da lei e a proteção de direitos fundamentais cabem, em última análise, ao Direito Administrativo, que fornece os mecanismos de atuação (fiscalização, sanção), e à Administração Pública, que age concretamente para aplicar esses textos normativos e proteger a coletividade.

Assim, é de se elogiar o fato de que o Brasil, que atua seguindo os passos do País pioneiro em positivar a tutela constitucional dos neurodireitos, que foi o Chile, ter encaminhado a PEC 29/2023, voltada a ampliar o rol dos direitos fundamentais da Constituição rumo ao reconhecimento de um novo direito para proteger a integridade mental e garantir a transparência algorítmica. Contudo, para além desse debate de Direito Constitucional, há uma questão igualmente importante que é justamente determinar uma forma regulatória eficiente, um framework regulatório, apto a prevenir, impedir ou remediar ações de empresas ou de neurotecnologias inseguras que infringirem os direitos.

2. CONECTANDO-SE COM A REALIDADE JURÍDICA E ADMINISTRATIVA

Nós temos direito à privacidade assegurada na própria Constituição Federal e em uma série de leis e normas, mas a pergunta é mais profunda: será que a privacidade existe além do papel? Há muito tempo nossa privacidade está em xeque… Há pelo menos uma década as chamadas “Big Techs” passaram a saber onde e com quem estamos, o que ouvimos, com quem falamos, o que dizemos, qual a nossa rotina, quais são os nossos gostos, o que fazemos, quanto tempo dormimos, quais doenças nós temos, se estamos em períodos de maior tensão e ansiedade, o que comemos, quais lugares frequentamos – isso apenas para exemplificar algumas poucas informações dentre várias outras que são coletadas diariamente por meio de plataformas digitais. Como elas sabem disso? Nós mesmos fornecemos boa parte da informação, gratuitamente, para essas empresas cada vez que postamos uma foto nas redes sociais, marcando a localização e uma pessoa que também aparece nela, por exemplo. A outra parte é coletada de forma passiva e inconsciente ou mesmo, por muitas vezes, sub-reptícia e ilegal.

Não surpreende ninguém que toda essa informação coletada sobre nós seja comprada por outras empresas interessadas em saber do nosso perfil: está dormindo pouco? Logo surge um anúncio de melatonina para dormir melhor. Está no Parque Y? No mesmo instante, surge no telefone celular uma promoção do McDonald’s – com a imagem de um belo sanduíche – e o slogan “apenas a X metros de você”. São essas formas indiretas de condicionar o nosso comportamento, induzindo-nos por meio da psicologia do consumo a partir da coleta e mercancia de nossos rastros digitais (Zuboff, 2020, p. 67).

Até então, essas empresas só eram capazes de saber aquilo que nós externávamos em forma de comportamento digital: era necessário digitar, dizer, compartilhar, postar, usar um aparelho ou ter um assistente digital. Você estaria seguro, em tese, em ambiente sem sinal de internet. No entanto, a neurotecnologia se aproxima de saber o que estamos pensando, ou, mais grave ainda: de interferir no que estamos pensando.

Rafael Yuste, neurobiólogo e um dos maiores pesquisadores da neurotecnologia ética atualmente, ainda em 2017 – ou seja, cinco anos antes do “hype” da IA – alertou que pesquisadores já eram capazes de interpretar a atividade neural em uma ressonância magnética funcional a ponto de diferenciar se o paciente estava pensando em uma pessoa ou em um carro, por exemplo. Na mesma oportunidade, também alertou que estamos a caminho de um mundo em que será possível decodificar os processos cerebrais das pessoas e até mesmo manipular artificialmente suas intenções, emoções e decisões (Yuste et al., 2017, p. 160).

Já há dezenas de pessoas com implantes cerebrais de chips produzidos por empresas como Neuralink, Synchron, Paradromics, Precision Neuroscience, dentre outras, com finalidade medicinal: são implantes instalados ora via cirurgia cranial, ora via artéria jugular, que buscam devolver a fala, o movimento do corpo, comandar dispositivos eletrônicos com o pensamento ou até mesmo interferir em transtornos do humor como a depressão (MIT TECHNOLOGY REVIEW, 2024).

A Neuralink, empresa do multibilionário Elon Musk, já realizou um implante e obteve autorização para o segundo. Noland Arbaugh foi a primeira pessoa a testar a tecnologia da Neuralink. Do tamanho de uma moeda, o chip “lê” as suas ondas cerebrais e as envia para um software, traduzido em comandos para o aparelho em que estiver instalado, como um celular ou notebook. A razão de ter se submetido a esse implante foi ter ficado tetraplégico após um trauma na medula espinhal ocorrido dentro de um rio enquanto era monitor de um acampamento, no Arizona (EUA). Sendo capaz de comandar apenas os músculos do pescoço para cima, agora é capaz de mover um cursor na tela de um computador ou smartphone com o seu “pensamento”, o que lhe devolveu parte de uma independência almejada. No entanto, o chip apresentou problemas e 85% dos seus conectores se soltaram, obrigado a empresa a recalibrar o software (G1, 2024).

Em entrevista à Forbes Brasil, o neurocientista brasileiro mundialmente reconhecido, Miguel Nicolelis, fez ponderação sobre o caso Neuralink e os limites da tecnologia de neurochips. Ele afirma que Elon Musk não inovou, já que o próprio Nicolelis já havia feito o mesmo – e com eletrodos não invasivos – em seu laboratório 25 anos antes. Os estudos resultaram no famigerado “chute da Copa do Mundo de 2014” por Juliano Pinto, um jovem paraplégico, que controlou um “exoesqueleto” (vestimenta robótica) com o seu pensamento. Veja trecho da entrevista:

Criei há 25 anos o que Musk fez agora”, diz Miguel Nicolelis

Forbes Brasil, 20 mar. 2024. Seção Forbes Tech

FB: Por que você escolheu trabalhar com a interface cérebro-máquina não-invasiva? 

MN: Há 25 anos, no meu laboratório, eu criei as técnicas de implante para interfaces cérebro-máquina [à época testadas em animais] para entender como elas deveriam funcionar.

Entretanto, em 2014, quando eu voltei para o Brasil durante o projeto da Copa do Mundo, eu entrevistei diversos pacientes e, junto com a minha equipe, cheguei à conclusão quase unânime de que eles queriam voltar a andar, mas sem se submeter a uma cirurgia. Então, começamos a quebrar a cabeça para construir alternativas não-invasivas. E nós conseguimos ir além, as interfaces cérebro-máquina não-invasivas que testamos conseguiram ajudar os pacientes de maneira crônica. Eles recuperaram movimentos de forma parcial, voltaram a sentir determinadas partes do corpo, algo que nunca tinha sido feito em décadas de pesquisa e tratamentos de lesões medulares.

De lá para cá, comecei a concretizar a ideia de que, para escalar esse tratamento, para que a tecnologia possa atingir o máximo possível de pacientes, não tem como trabalhar com técnicas invasivas. Esse é o primeiro mandamento da Medicina, tudo o que você fizer não pode colocar a pessoa em mais risco do que ela já está.

FB: De onde surgiu o interesse de Elon Musk pela interface cérebro-máquina?

MN: Nós, cientistas, precisamos esperar anos para que as revistas científicas publiquem nosso trabalho. Mas aí chegam pessoas como o Elon Musk, que só publicam algumas linhas nas redes sociais, sem nenhuma informação, nenhum dado, nenhuma referência, e as pessoas acreditam veementemente. É uma injustiça com os verdadeiros profissionais, cientistas e pesquisadores. Quando ele fala que o paciente dele foi bem-sucedido e controlou um cursor de computador, desculpa, mas meu laboratório fez exatamente a mesma coisa há 20 anos com onze pacientes. E tem quem acredite que isso é super revolucionário.

Outra questão, além da falta de embasamento, é a mercantilização da pesquisa científica. Hoje virou moda na comunidade científica criar startups, só que isso é um problema. Porque a prioridade deixa de ser o estudo e passa a ser o dinheiro. Eles publicam casos de um paciente para conseguir levantar investidores. Só que isso está errado. Na ciência, nós não podemos afirmar nada a partir de um paciente.

Essa cultura de startups cria um grande conflito de interesses. Hoje, se você publica algo que refuta a tese de uma startup, você pode destruir um negócio de milhões de dólares. 

FB: Quais são os riscos dessa mercantilização da ciência?

MN: Olha, tem muita ideia boa que vai funcionar e já está funcionando. Mas tem coisa que é fantasia de bilionário. Temos que saber separar. Não existe nenhuma mágica. E, por exemplo, para uma família que tem uma pessoa com deficiência, é muito difícil acreditar em algo fantasioso.

Quando o Elon Musk fala que ele vai usar um chip para que pessoas possam jogar videogame com o pensamento, ou fazer upload de conteúdo no cérebro, ele está inspirado em filmes de ficção científica. Essas suposições vão contra as leis da física, o cérebro não é um computador, ele é uma máquina analógica, biológica e orgânica. E nenhum sistema regulatório do mundo vai aprovar que façam implantes cerebrais em pessoas saudáveis. Nenhum bom neurocirurgião vai querer fazer isso. Existem riscos sérios de infecção, rejeição e até mesmo do dispositivo parar de funcionar. Eu sei disso porque no meu laboratório nós temos o recorde mundial de duração, foram nove anos de funcionamento de chips implantados em macacos

Nicolelis é conhecido por ser cético quanto ao “hype” da inteligência artificial e outras tecnologias que prometem resolver todos os problemas da humanidade. Há também outras entrevistas com Nicolelis no YouTube, disponíveis nas referências – sugeridas para aprofundamento dessa aula – em que o neurocientista explica de forma minuciosa como começou a interface cérebro-máquina e seu prognóstico (não muito otimista) para o futuro da neurotecnologia e inteligência artificial.

A questão que se coloca aqui é: para realizar todos esses feitos médicos, que são louváveis em uma leitura apressada, o chip necessariamente precisa interpretar as ondas cerebrais ou, no caso específico de uma das propostas de implante, chamado Motif, interferir diretamente no humor do paciente para tratar transtornos psiquiátricos. Mas, há diversos questionamentos que emergem de forma automática: como desativar esses chips? Como garantir que eles são utilizados somente para a finalidade pela qual foi vendido? E se empresas quiserem pagar para influenciar nas nossas ideias, emoções, pensamentos e desejos? Eles coletam os dados do pensamento do paciente para venda para outras empresas? As proprietárias da tecnologia podem saber tudo o que aquela pessoa pensa? Se o dispositivo falhar, como resolver? É possível garantir que a empresa não passará a influenciar diretamente no comportamento do paciente? E se o sistema precisar de atualização, o que fazer? Terá de assinar um plano para manter a funcionalidade e os updates necessários ao uso do chip?

Aqui, não há como não associar, para aqueles que assistiram, ao episódio Pessoas Comuns da série Black Mirror:

Black Mirror: a Tecnologia do Episódio “Pessoas Comuns” Pode Existir?

Forbes Brasil, 15 abr. 2025. Seção Forbes Tech

“O episódio ‘Pessoas Comuns’, da sétima temporada de Black Mirror, apresenta uma tecnologia fictícia chamada Rivermind, que utiliza implantes cerebrais conectados a servidores externos para manter uma pessoa viva. Embora a trama seja distópica, ela levanta questões sobre o avanço de tecnologias reais, como chips cerebrais e modelos de assinatura digital, que já estão em desenvolvimento.

A ideia de implantes cerebrais que interagem com servidores externos não está tão distante da realidade. Empresas como a Neuralink, de Elon Musk, estão desenvolvendo chips cerebrais com o objetivo de restaurar funções motoras e conectar o cérebro humano a dispositivos eletrônicos. Esses implantes já foram testados em animais e receberam autorização para ensaios clínicos em humanos. No entanto, o uso de tais tecnologias para manter uma pessoa viva, como mostrado no episódio, ainda é um conceito experimental e enfrenta desafios éticos e técnicos significativos.”

No episódio 2 do Podcast: Fala, Nohara! (SPOTIFY), é descrito de forma mais pormenorizada a situação retratada no Black Mirror:

Regulação dos Neurodireitos no Brasil

FALA, Nohara! Episódio 2, 23 abr. 2025

“Eu vou falar sobre um episódio que acho que muitas pessoas já viram, da sétima temporada do Black Mirror, que é simplesmente de arrepiar. Dizer para vocês que contém spoiler, mas ouvir aqui, não invalida assistir o episódio, muito pelo contrário. Ressalta os principais temas e contextualiza o debate dentro da área jurídica.

O episódio se passa na Inglaterra. Um casal que se ama, formado por uma professora de ensino médio chamada Amanda e um metalúrgico. Vão todos os anos celebrar o casamento numa pousada, namorar, comer hambúrguer como uma promessa que eles tiveram, sendo que o casal alimenta o desejo de tentar ter o primeiro filho. Daí, Amanda tem um problema na cabeça, fica em coma, tem um tumor gravíssimo no cérebro e o marido desolado se depara com uma solução apresentada por uma empresa chamada Rivermind, que oferece uma tecnologia experimental.

Salvar a vida da Amanda, em que a solução se dá justamente na implantação de um chip cerebral. Para o funcionamento do chip, no entanto, há necessidade do pagamento de 300 USD mensais para a empresa e também que a Amanda fique na área de cobertura do serviço.

Aumenta a necessidade de sono para que a Amanda se sinta bem com as funcionalidades do dispositivo e, de repente, a Amanda, na sua atividade profissional, começa a ter comportamentos estranhos, começa a recitar slogans, propaganda e jingles de determinados produtos aos seus alunos. Isso chega até a ameaçar o seu emprego, por exemplo, a uma criança que sofre bullying por não ter dinheiro para comprar um tênis novo e Amanda, sem consciência, faz uma propaganda de uma conhecida marca de tênis.

O casal, então, indignado voltará a ter contato com a empresa, eis que se oferece um pacote de 500 USD adicionais, além dos 300 USD, ou seja, que resultam em 800 USD mensais. Simplesmente para ela parar de recitar propaganda e ainda oferecer outros benefícios, como as sensações internas de prazer e uma cobertura maior da abrangência do serviço.

O casal se vê obrigado a assinar o serviço mais caro, mas fica muito além do que podem pagar. Então, o marido, com muita tristeza, vende o berço que eles compraram para o futuro neném. Aumentam os turnos de trabalho na metalurgia e, pior, ele se inscreve uma plataforma de humilhações pessoais (…) Bem, daí: é ladeira abaixo. Não quero dar o spoiler total, mas esse episódio realmente traz os desafios do neurocapitalismo e um contexto de exploração em acesso desigual às novas tecnologias.

Lembra a todos da realidade dos planos de saúde que cobram cada vez mais, oferecendo cada vez menos; das plataformas de streaming e vídeos que te obrigam a assinar serviços para não sermos bombardeados de publicidade (no caso do episódio, a publicidade vem dentro da cabeça, da mente, da protagonista) e, principalmente, das novas tecnologias que têm impacto nas funções neurológicas e no cérebro em particular, manipulando a mente e alterando pensamentos, sensações e emoções”.

Percebe-se, pois, que o episódio do Black Mirror não está tão distante da nossa realidade… Por isso, o que nos resta é questionar, de que forma o Direito Administrativo poderá solucionar essa questão? É nesse cenário, de insegurança de direitos fundamentais, até mesmo mental, que o Direito Administrativo assume notório protagonismo por meio de seus mecanismos de regulação.

O papel regulatório do Estado é essencial para garantir os direitos fundamentais dos indivíduos, notadamente os direitos à privacidade e à liberdade de expressão e, com mais propriedade, liberdade de pensamento. No entanto, esses direitos precisam ser descolados de seu alcance original para serem ressignificados em uma sociedade em que a privacidade é a exceção, e a “vigilância” alcançou o próprio pensamento não externado, o próprio pensamento “dentro da cabeça”. Mas como o Estado poderá fazê-lo? Nesse contexto é que nasce a preocupação com a tutela dos neurodireitos.

O termo “neurodireitos” é em explorado em Yuste et al., 2017 com o estabelecimento de neurodireitos mínimos:

Four ethical priorities for neurotechnologies and AI

Por Rafael Yuete et al.
(Nature, v. 551, n. 7679, p. 159–163, 2017. Tradução dos autores)

“O volume e a variedade de aplicações da neurotecnologia estão aumentando rapidamente dentro e fora do ambiente clínico e de pesquisa. A distribuição onipresente de neuroaplicações mais baratas, escaláveis e de fácil utilização tem o potencial de abrir oportunidades sem precedentes na interface cérebro-máquina e de tornar a neurotecnologia intrinsecamente incorporada ao nosso cotidiano. Embora essa tendência tecnológica possa gerar imensas vantagens para a sociedade em geral em termos de benefício clínico, prevenção, auto quantificação, redução de vieses, uso de tecnologia personalizada, análise de marketing, domínio militar, segurança nacional e até mesmo precisão judicial, suas implicações para a ética e o direito permanecem em grande parte inexploradas. Argumentamos que, à luz da mudança disruptiva que a neurotecnologia está determinando no ecossistema digital, o terreno normativo deve ser urgentemente preparado para prevenir o uso indevido ou consequências negativas não intencionais. Além disso, dado o caráter fundamental da dimensão neurocognitiva, defendemos que tal resposta normativa não deve focar exclusivamente na responsabilidade civil (tort law), mas também em questões fundacionais no nível do direito dos direitos humanos.

Nesse contexto, sugerimos que as tendências emergentes na neurotecnologia estão a suscitar emendas coordenadas à atual estrutura de direitos humanos, que exigirão ou uma reconceitualização dos direitos humanos existentes ou mesmo a criação de novos direitos neuroespecíficos. Em particular, argumentamos que os riscos colaterais emergentes associados ao uso generalizado de neurotecnologias pervasivas, como o hackeamento cerebral malicioso (malicious brain-hacking), bem como os usos perigosos de neurotecnologias médicas, podem exigir uma reformulação do direito à integridade mental. De fato, embora a integridade mental seja protegida pela Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (Artigo 3º), esse direito é conceituado como um direito de acesso e proteção à saúde mental e é complementar ao direito à integridade física. Sugerimos que, em resposta às possibilidades emergentes da neurotecnologia, o direito à integridade mental não deve garantir proteção exclusivamente contra doenças mentais ou lesões traumáticas, mas também contra intrusões não autorizadas no bem-estar mental de uma pessoa, realizadas através do uso de neurotecnologia, especialmente se tais intrusões resultarem em dano físico ou mental para o usuário da neurotecnologia.

Além dessa reconceitualização, defendemos que a criação de direitos neuroespecíficos pode ser necessária como uma estratégia para lidar com possíveis usos indevidos da neurotecnologia, bem como uma forma de proteção das liberdades fundamentais associadas à tomada de decisão individual no contexto do uso da neurotecnologia. A esse respeito, endossamos o reconhecimento de um direito negativo à liberdade cognitiva como um direito para a proteção dos indivíduos contra o uso coercitivo e não consentido de tais tecnologias. Adicionalmente, como solução complementar, propusemos o reconhecimento de dois outros direitos neuroespecíficos: o direito à privacidade mental e o direito à continuidade psicológica. O direito à privacidade mental é um direito à privacidade neuroespecífico que protege informações privadas ou sensíveis na mente de uma pessoa contra coleta, armazenamento, uso ou mesmo exclusão não autorizados — em formato digital ou de outra forma. Em contraste com os direitos de privacidade existentes, o direito à privacidade mental visa proteger a informação antes de qualquer externalização extracraniana (por exemplo, em formato verbal ou impresso), bem como o gerador de tal informação (o processamento neural de uma pessoa). Como tal, ele protege a dimensão mental de uma pessoa como o domínio último da privacidade da informação no ecossistema digital. Em coordenação com isso, o direito à continuidade psicológica protegerá os substratos mentais da identidade pessoal contra a alteração inconsciente e não consentida por terceiros através do uso de neurotecnologia invasiva ou não invasiva.

Todos esses direitos propostos com foco neurológico estão mutuamente ligados e mantêm uma íntima relação familiar. Sendo o substrato de todas as outras liberdades, a liberdade cognitiva em seu sentido positivo é um pré-requisito para todos os outros neurodireitos. Como tal, ela está para a privacidade mental, integridade mental e continuidade psicológica em uma relação muito similar à que a liberdade de pensamento está para os direitos de privacidade, integridade e identidade. Contudo, em seu sentido negativo de proteção contra o uso coercitivo, a liberdade cognitiva só pode dar conta parcialmente dos usos não intencionais da neurotecnologia emergente. De fato, intrusões ilícitas na privacidade mental de uma pessoa podem não envolver necessariamente coerção, pois poderiam ser realizadas abaixo do limiar da experiência consciente da pessoa. O mesmo se aplica a ações que envolvam dano à vida mental de uma pessoa ou modificações não autorizadas da sua continuidade psicológica, as quais também são facilitadas pela capacidade das neurotecnologias emergentes de intervir no processamento neural de uma pessoa na ausência de sua consciência”.

Como vimos na parte introdutória, o direito fundamental à privacidade, liberdade de expressão e de pensamento, dentre outros direitos individuais, adquirem uma nova dimensão a partir da existência dessas neurotecnologias e da possibilidade de interferência direta na mente dos indivíduos. Portanto, uma das formas de proteger esses direitos basilares é especificá-los em um novo âmbito de proteção, criando um mecanismo próprio para tanto.

O Chile já se adiantou nesse debate foi o pioneiro a inserir a proteção aos neurodireitos em sua constituição (Guzmán, 2021). Atualmente, o Art. 19.1 da Constituição Chilena já engloba a proteção cerebral (CHILE, 2021):

Art. 19. 1. “O desenvolvimento científico e tecnológico estará a serviço das pessoas e será realizado com respeito à vida e à integridade física e psíquica. A lei regulará os requisitos, condições e restrições para sua utilização nas pessoas, devendo resguardar especialmente a atividade cerebral, assim como a informação dela proveniente.

Já houve decisão da Suprema Corte do Chile, no caso Guido Girardi vs. Emotiv Inc., em que houve condenação da empresa americana Emotiv, pela comercialização de dispositivo de neurotecnologia, do tipo eletroencefalograma móvel, denominado Insight, que coletava neurodados, sem o adequado consentimento. Neste sentido, importante analisar o teor da questão:

Guido Girardi vs. Emotiv Inc.

Suprema Corte do Chile
(Processo 105.065-2023, Rel. Min. Ángela Vivanco, j. 09/08/2023)

“Que foi interposta uma ação constitucional de proteção em representação de Guido Girardi Lavín contra a empresa Emotiv Inc., em razão da venda e comercialização no Chile do dispositivo denominado “Insight”, sob a alegação de que este não protege adequadamente a privacidade das informações cerebrais dos seus usuários, violando assim as garantias constitucionais previstas nos numerais 1, 4, 6 e 24 do artigo 19 da Constituição Política da República.

Esclarece que a requerida é uma empresa de bioinformática e tecnologia que desenvolve e fabrica produtos de eletroencefalografia portátil, além de neuro-headsets, kits de desenvolvimento de software, softwares, aplicativos móveis e produtos de dados, com sede em São Francisco, Estados Unidos. O produto questionado, Insight, consiste em um dispositivo sem fio semelhante a uma faixa com sensores que coletam informações sobre a atividade elétrica do cérebro, obtendo dados relativos a gestos e movimentos, preferências, tempos de reação e atividade cognitiva de quem o utiliza.

Afirma-se que o autor da ação adquiriu um dispositivo Insight por meio do site da requerida, recebendo-o em sua residência em 21 de março de 2022. Em seguida, seguindo as instruções do dispositivo e com o objetivo de registrar e acessar seus dados cerebrais, criou uma conta na nuvem de dados da Emotiv, após aceitar os termos e condições da empresa. Posteriormente, instalou em seu computador o software denominado Emotiv Launcher, que consiste num ponto de acesso a todas as informações, ferramentas e gestão dos dispositivos da Emotiv, associando sua conta ao dispositivo Insight, tendo novamente que aceitar os termos e condições da empresa.

Apesar disso, alega-se que, por ter utilizado a licença gratuita e não a versão “PRO”, não era possível exportar ou importar nenhum registro dos dados cerebrais. O protegido decidiu não adquirir a licença paga e iniciou o registro de suas informações cerebrais, tomando ciência posteriormente de que todas essas informações foram gravadas e armazenadas na nuvem da empresa Emotiv.

Afirma ainda que, devido ao uso do dispositivo e ao armazenamento de suas informações cerebrais pela empresa, ficou exposto a riscos como: (i) reidentificação; (ii) pirataria ou invasão (hacking) de dados cerebrais; (iii) reutilização não autorizada dos dados cerebrais; (iv) mercantilização dos dados cerebrais; (v) vigilância digital; (vi) captura de dados cerebrais para fins não consentidos pelo indivíduo, entre outros. Ademais, alega-se violação ao disposto no artigo 11 da Lei n° 19.628, relativo à devida diligência no tratamento dos dados pessoais, obrigação dos responsáveis por registros ou bancos de dados pessoais, bem como do artigo 13 da mesma lei, que assegura o direito das pessoas ao cancelamento ou bloqueio de seus dados pessoais. Isso porque, mesmo após o encerramento da conta de usuário da Emotiv, a empresa requerida mantém as informações cerebrais para fins de pesquisa científica e histórica.

Solicita, portanto, que seja acolhida a presente ação, ordenando-se: (i) que a empresa requerida modifique suas políticas de privacidade no que diz respeito à proteção dos dados cerebrais de seus usuários no Chile; (ii) que a empresa requerida se abstenha de vender o dispositivo Insight no Chile enquanto não modificar suas políticas de privacidade relacionadas à proteção dos dados cerebrais; (iii) que a empresa requerida elimine imediatamente de sua base de dados as informações cerebrais do autor; (iv) que se adotem todas as demais medidas que se julguem necessárias para restabelecer o império do direito, com condenação em custas”.

No Brasil, há um debate incipiente sobre o tema. Temos a PEC 29/2023, que busca alterar o artigo 5º da Constituição Federal para incluir, entre os direitos e garantias fundamentais, “a proteção à integridade mental e a transparência algorítmica”, o projeto teve o auxílio de Camila Pintarelli (Nohara, Martins, Pintarelli, 2024, p. 179), e o PL 522/2022, que propõe modificar a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD – Lei nº 13.709/2018) para conceituar “dado neural” e regulamentar sua proteção (BRASIL, 2022; BRASIL, 2023). Também há o PL 2174, de autoria do Deputado do PT Rubens Pereira Jr., que apresenta a seguinte justificação:

PL 2174

“Trata-se de Projeto de Lei com o objetivo de estabelecer as normas e princípios para proteção dos direitos fundamentais relacionados ao cérebro e ao sistema nervoso humano, garantir a proteção e promoção dos neurodireitos dos indivíduos.

Os neurodireitos são fundamentais para garantir a proteção e promoção da dignidade humana, a autonomia e a integridade física e mental dos indivíduos. Esta Lei visa estabelecer as bases legais para a proteção dos neurodireitos e garantir que toda pesquisa e utilização de técnicas de modulação cerebral sejam realizadas de forma ética e respeitosa aos direitos fundamentais dos indivíduos.

É essencial que a regulamentação dos neurodireitos acompanhe os avanços científicos e tecnológicos nesta área, para que possamos garantir que as novas tecnologias sejam utilizadas em benefício da humanidade e não em detrimento dela. A proteção dos direitos humanos fundamentais, como a autonomia, a integridade física e mental e a privacidade devem ser guias orientativos de pesquisas e desenvolvimentos de produtos.

Com o avanço acelerado das tecnologias de modulação cerebral, há uma crescente preocupação com o uso dessas técnicas para manipulação, mapeamento e controle das mentes das pessoas, o que pode levar a violações de direitos humanos e danos irreparáveis à integridade física e psicológica dos indivíduos, sem contar os riscos à democracia.

Por isso, é essencial que o Estado brasileiro crie leis específicas para proteger os neurodireitos dos cidadãos, estabelecendo limites para o uso dessas tecnologias, sem impedir os avanços tecnológicos, mas garantindo o consentimento livre, informado e esclarecido dos indivíduos em todas as intervenções cerebrais, e proibindo a utilização dessas técnicas para fins ilegais ou prejudiciais à saúde física e mental dos indivíduos.

De igual forma, a determinação de marcos éticos e legais para pesquisa neurais é essencial para proteger a privacidade dos indivíduos, garantindo que as informações cerebrais não sejam monitoradas ou utilizadas sem autorização prévia.

Portanto, a regulamentação dos neurodireitos é uma medida crucial para proteger os direitos humanos em um mundo cada vez mais conectado e tecnológico, garantindo a autonomia, a integridade física e mental e a privacidade dos indivíduos”.

Apenas prever os direitos não é suficiente para garantir a proteção contra o abuso do poder econômico das grandes empresas de tecnologia. O Estado possui mecanismos jurídicos dentro do Direito Administrativo e a consequente possibilidade de intervir para proteger seus cidadãos do mau uso dessa tecnologia.

Nesse aspecto, vejamos sobre a possibilidade de interferência do Estado nas atividades de agentes privados:

Direito Administrativo

Por Irene Patrícia Nohara
(14ª ed. Barueri: Atlas, 2025, p. 132.)

“O poder de polícia recai sobre inúmeras atividades que acabam impedindo que as ações dos agentes privados violem ou ameacem interesses coletivos no tocante, por exemplo, à higiene, à ordem pública, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado e das atividades econômicas dependentes de autorização em sentido lato.

O parágrafo único do Art. 170 da Constituição determina ser livre o exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei. Enquanto a exploração estatal direta na atividade econômica em sentido estrito é medida viabilizada apenas nas hipóteses do art. 173 da Constituição, pois ao Estado só é dado realizar diretamente atividade econômica diante de imperativos da segurança nacional e relevante interesse coletivo, definidos em lei, sendo o mercado campo geralmente reservado aos agentes privados – nada obsta que o Estado, por meio de uma atuação legítima de poder de polícia, estabeleça limites às atividades privadas, condicionado o seu exercício “para evitar comportamentos danosos ao conjunto social”, em expressão cunhada por Celso Antônio Bandeira de Mello”.

A partir do texto acima, vemos que uma das possibilidades seria, por exemplo, submeter o exercício da atividade de neurotecnologia no Brasil ao controle pelo poder de polícia. Outras possibilidades, todas dentro do âmbito do Direito Administrativo são: (a) medidas de governança antecipatória dos desafios da interface cérebro-máquina; (b) estabelecer uma agência reguladora focada na neurotecnologia, com estrutura especializada e responsável por todo o ciclo regulatório; (c) sujeitar à auditoria e certificação obrigatórias da segurança e operação dos dispositivos dentro de suas finalidades, evitando-se comercializações distorcidas ou manipulações; (d) corregulação, o que não é isento de risco de captura regulatória, dado alerta de Nicolelis de que o interesse público não sucumba à dinâmica lucrativa, em que a ciência, a segurança e a ética estejam em primeiro plano; e (e) estabelecer fiscalização periódica de tecnologias específicas pelo Estado.

Abaixo um texto relevante que explica o conceito de governança antecipatória:

Definindo e traçando a governança antecipatória

Por David H. Guston. Understanding ‘anticipatory governance
(Social Studies of Science, [s. l.], v. 44, n. 2, p. 218–242, 2014. Tradução dos autores)

“Embora o CNS-ASU (Center for Nanotechnology in Society at Arizona State University) utilize o conceito de governança antecipatória desde sua fundação, levou algum tempo até que ele emergisse como a visão central e estratégica. A origem do termo, anteriormente, é considerada ainda um tanto misteriosa. De fato, só quando o conceito foi articulado de forma mais central como a visão estratégica do centro é que se considerou plenamente necessário realizar uma pesquisa genealógica mais aprofundada sobre ele.

Na busca inicial, Karinen e Guston (2010) não encontraram referências ao termo “governança antecipatória” anteriores a 2001, exceto por uma dissertação de mestrado de um estudante no Canadá (Feltmate, 1993). Uma repetição contemporânea dessa busca no Google Scholar produz resultados semelhantes. A partir de 2001, entretanto, dois ramos de literatura sobre governança antecipatória começam a emergir: um associado a autores da área de administração pública e gestão (ex.: Bächler, 2001) e outro vinculado a autores dos estudos e das políticas ambientais (ex.: Gupta, 2001).

Distintas compreensões sobre governança antecipatória se desenvolvem em cada uma dessas vertentes iniciais. Na literatura de administração pública e gestão, influenciada por Lindblom (1959) e outros, a governança antecipatória assume uma conotação negativa, uma vez que os incrementalistas associam antecipação à previsão — algo que consideram tanto impossível quanto indesejável. Por sua vez, a literatura dos estudos e das políticas ambientais também encara a previsão de maneira crítica (e.g., Sarewitz et al., 2000), porém faz uma distinção entre antecipação e previsão, o que permite uma visão mais favorável da governança antecipatória.

Pouco depois do uso do termo “governança antecipatória” nas áreas de políticas e estudos ambientais, Guston e Sarewitz (2002) introduzem o conceito nos Estudos de Ciência, Tecnologia e Sociedade (CTS) e nos estudos sociais da nanotecnologia. Embora inicialmente adotem um uso mais comum na literatura de políticas, poucos anos depois o CNS-ASU rapidamente migra para uma perspectiva mais alinhada aos estudos ambientais.

Feltmate (1993) toma sua perspectiva de antecipação da literatura da nova gestão pública. Osborne e Gaebler (1993), que utilizam o termo “governo antecipatório” em vez de “governança antecipatória”, buscam reformar o governo, e não descrever as forças e estratégias mais amplas que operam na governança. Isso, embora façam parte da nova gestão pública associada ao conceito neoliberal de que o governo deve ser gerido de forma mais semelhante ao setor privado.

Para Feltmate (1993) e Osborne e Gaebler (1993, especialmente no capítulo 8), o governo antecipatório consiste, sobretudo, em “prevenção, em vez de cura”. Em um capítulo dedicado inteiramente ao tema, eles se concentram em como o governo pode usar a prospecção e o planejamento estratégico de longo prazo para reduzir ou eliminar resultados negativos ex ante, em vez de manter uma grande burocracia voltada a reagir a situações que já se deterioraram. Eles oferecem exemplos nas áreas de prevenção de incêndios, saúde pública e proteção ambiental para reforçar seu argumento a favor do planejamento estratégico e do orçamento de longo prazo — práticas que são mais preditivas do que antecipatórias, já que envolvem conjuntos de planos, previsões, faixas orçamentárias e afins.

Contudo, eles também apoiam iniciativas um pouco mais antecipatórias, como as chamadas “Comissões de Futuros”, nas quais “os cidadãos analisam tendências, desenvolvem cenários alternativos para o futuro e estabelecem recomendações e metas para a comunidade” (Osborne e Gaebler, 1993, p. 230).

A forma ancestral do governo reinventado por Osborne e Gaebler é a “democracia antecipatória” de Alvin Toffler (1970), proposta como antídoto ao diagnóstico de “choque do futuro”. A democracia antecipatória de Toffler consiste em dois elementos básicos: revitalizar instituições locais e participativas (como as assembleias comunitárias na Nova Inglaterra) e dotá-las da capacidade de pensar no longo prazo (por exemplo, por meio de projeções orçamentárias futuras).

Embora não seja completamente distinta do uso mais tecnocrático feito por Osborne e Gaebler, Toffler (1975) endossa de maneira mais explícita os elementos participativos, que vão além de orçamentos e demografia, incorporando mudanças culturais e um forte enfoque nos aspectos normativos da decisão sobre “a pergunta essencial”: que tipo de futuro queremos construir? (Toffler, 1970, p. 118–119).

(…)

Paralelamente a essa linhagem acadêmica, existe uma linhagem mais profunda, voltada às políticas públicas, para as práticas antecipatórias. O historiador da ciência Charles Weiner (1994) mapeia muitas dessas práticas, concentrando-se em “diversos obstáculos principais que dificultam os esforços para antecipar e prevenir consequências negativas” do Projeto Genoma Humano (p. 34). Entre os exemplos anteriores que ele identifica estão as discussões entre biólogos no início dos anos 1960 sobre a possibilidade da engenharia genética humana. Esse mesmo tema levou o Senado dos EUA a “considerar a necessidade de uma comissão nacional” para “antecipar, examinar previamente e relatar sobre as implicações legais, éticas e sociais da pesquisa biomédica” (Weiner, 1994, p. 37).”

3. DEBATENDO

  1. Por que o Chile foi considerado pioneiro na proteção dos neurodireitos no mundo?
  2. Como está o Brasil na tutela dos neurodireitos?
  3. Quais os desdobramentos de tutela dos neurodireitos?
  4. Quais os riscos que os neurodispositivos oferecem ao ser humano na atualidade?
  5. O que há de ficcional e o que há de perigo real na distopia do episódio de Black Mirror denominado “Pessoas Comuns”?  
  6. O que tem a ver a atividade de poder de polícia do Estado com a proteção dos neurodireitos?
  7. Dentre as medidas para regulação de neurodireitos, quais reputa convenientes: (a) a criação de uma agência reguladora específica no tema? (b) a articulação das distintas agências e uma coordenação para enfrentar as ameaças das neurotecnologias aos neurodireitos? (c) a autorregulação e a corregulação? (d) um sistema de certificação? (e) uma fiscalização permanente do Estado? e (f) a antecipação dos desafios futuros com uma governança antecipatória?
  8. Quais entidades e órgãos reputa mais adequados para tal tarefa? Há de haver uma reestruturação da Administração para tal fim? 
  9. A Regulação da “NeuroBoost”. Cenário: Uma startup brasileira de tecnologia, a “NeuroBoost”, lança no mercado uma tiara não invasiva que promete aumentar a performance de estudantes e profissionais por meio de neuroestimulação de baixa frequência para melhorar o foco. O produto coleta dados neurais para “personalizar a experiência do usuário” e funciona por meio de um aplicativo que exige uma assinatura mensal para atualizações de software e novas funcionalidades. Tarefa: Atuando como um(a) consultor(a) jurídico(a) para o Estado brasileiro, você deve elaborar uma nota técnica propondo uma estratégia regulatória para a “NeuroBoost” e tecnologias similares. Utilize os conceitos e instrumentos de Direito Administrativo presentes no texto para fundamentar sua proposta, abordando os seguintes pontos: De que maneira o poder de polícia do Estado poderia ser exercido sobre a atividade da NeuroBoost? Discuta as vantagens e desvantagens entre duas abordagens: (a) submeter a NeuroBoost à fiscalização de uma agência já existente (como a ANVISA, em analogia ao exemplo da Vigilância Sanitária) ou (b) defender a criação de uma agência reguladora específica para neurotecnologias. Considerando o PL 522/2022, que propõe conceituar “dado neural”, quais seriam as implicações práticas dessa definição para a coleta e o armazenamento de dados pela NeuroBoost?

4. APROFUNDANDO

BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei nº 522, de 2022. Modifica a Lei n° 13.709, de 14 de agosto de 2018 (Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais), a fim de conceituar dado neural e regulamentar a sua proteção. Brasília, DF: Câmara dos Deputados, 2022. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2317524. Acesso em: 12 jun. 2025.

BRASIL. Senado Federal. Proposta de Emenda à Constituição nº 29, de 2023. Altera a Constituição Federal para incluir, entre os direitos e garantias fundamentais, a proteção à integridade mental e à transparência algorítmica. Brasília, DF: Senado Federal, 2023. Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/158095. Acesso em: 12 jun. 2025.

CHILE. Ley nº 21.383, de 2023. Biblioteca del Congreso Nacional, 2021. Disponível em: https://www.bcn.cl/leychile. Acesso em: 14 jun. 2025.

CABRAL, Anna Cecília Moreira. Regulação da proteção de dados no âmbito da neurotecnologia e dos neurodireitos. 2024. 118 f. Dissertação (Mestrado em Direito da Regulação) – Escola de Direito do Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro, 2024.

FALA, Nohara! Episódio 2 – Regulação dos Neurodireitos no Brasil. 23 abr. 2025. 1 podcast (21 min 22 s). Publicado no Spotify. Disponível em: https://open.spotify.com/episode/2Vb590MqvXXrPWq0CUnsON?si=ML-e9PKQRv6YXGjS8PaQhw. Acesso em: 6 jun. 2025.

FORBES. “Criei há 25 anos o que Musk fez agora”, diz Miguel Nicolelis. Forbes Brasil, 20 mar. 2024. Seção Forbes Tech. Disponível em: https://forbes.com.br/forbes-tech/2024/03/criei-ha-25-anos-o-que-musk-fez-agora-diz-miguel-nicolelis/. Acesso em: 10 jun. 2025.

G1. “Me tornou mais independente”: Primeiro paciente da Neuralink conta como é ter chip no cérebro. G1, Rio de Janeiro, 24 maio 2024. Disponível em: https://g1.globo.com/inovacao/noticia/2024/05/24/me-tornou-mais-independente-primeiro-paciente-da-neuralink-conta-como-e-ter-chip-no-cerebro.ghtml. Acesso em: 12 jun. 2025.

GUSTON, David H. Understanding ‘anticipatory governance’. Social Studies of Science, v. 44, n. 2, p. 218-242, Apr. 2014. DOI: 10.1177/0306312713508669. Disponível em: https://journals.sagepub.com/doi/full/10.1177/0306312713508669. Acesso em: 9 jun. 2025.

IENCA, Marcello; ANDORNO, Roberto. Towards new human rights in the age of neuroscience and neurotechnology. Life Sciences, Society and Policy, [s. l.], v. 13, n. 5, p. 1-27, 2017. DOI: 10.1186/s40504-017-0050-1.

IENCA, Marcello. On Neurorights. Frontiers in Human Neuroscience, v. 15, 2021. Disponível em: https://www.frontiersin.org/articles/10.3389/fnhum.2021.701258/full. Acesso em: 12 jun. 2025.

GUSTON, David H. Understanding ‘anticipatory governance’. Social Studies of Science, [s. l.], v. 44, n. 2, p. 218–242, 2014.

GUZMÁN H., Lorena. Chile: Pioneering the protection of neurorights. The UNESCO Courier, [s. l.], 21 mar. 2022. Atualizado em 13 out. 2023. Disponível em: https://courier.unesco.org/en/articles/chile-pioneering-protection-neurorights. Acesso em: 12 jun. 2025.

JUBILUT, Paulo. CHINA usa Inteligência Artificial nas escolas. [S. l.: s. n.], 23 maio 2023. 1 vídeo (1 min.). Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=u_APEvjzNPE. Acesso em: 12 jun. 2025.

PALMA, Juliana de. Atividade normativa da Administração Pública: uma análise sobre o seu regime jurídico. 2014. 248 f. Dissertação (Mestrado em Direito do Estado) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014.

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ZUBOFF, Shoshana. A Era do Capitalismo de Vigilância. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020.