1. CONHECENDO O BÁSICO
O tema da nossa aula de hoje perpassa pela regulação dos serviços públicos. A regulação dos serviços públicos teve a sua gênese atrelada à necessidade de apartação do Direito Administrativo do Direito Privado. Nas primeiras décadas do século XX, para uma vertente sociológica, a atuação estatal estaria atrelada ao dever de prestação um de serviço público, a um conjunto de deveres de provimento das necessidades afetas à coesão social.
Foi, contudo, a partir da consolidação da escola de Bordeuax, que a noção tradicional de serviço público ganhou corpo. De acordo com essa concepção, no contexto permeado pelo advento de um Estado Social, toda vez que se estiver diante de uma atividade considerada serviço público, sobre ela incidirá um regime especial, um plexo de prerrogativas, voltado à sua regular execução.
Ainda para tal escola, os serviços públicos teriam as seguintes características: (i) a titularidade de tais atividades pelo Estado; (ii) a interdição de sua prestação em regime de liberdade, só sendo admitida a sua prestação por particulares recebedores de uma outorga específica do poder público; e (iii) a sujeição de todos os prestadores a um regime jurídico único, fortemente regulado e pautado por prerrogativas publicísticas (publicatio).
Com base na importação de tais orientações, a doutrina pátria passou defender o entendimento segundo o qual, em sede de serviços públicos, sequer caberia falar em intervenção estatal, pois que “não se intervém no que é próprio”. Essa construção a propósito do regime dos serviços públicos refletiu-se no entendimento segundo o qual os serviços públicos referidos, pelo texto da Constituição de 1998, especialmente os previstos nos artigos 21 e 175, somente poderiam ser prestados, pelo próprio Estado e em regime de exclusividade, interditando-se à iniciativa dos particulares, salvo na condição de seus delegatários (por concessão ou permissão).
Acontece que tal conceito vem cedendo terreno ao conceito de Serviço Econômico de Interesse Geral (SEIG), consagrado no âmbito da União Europeia. De acordo com essa concepção, central no regime comunitário europeu – posto que cunhada com fins de integração –, os SEIG são todas as atividades de relevância pública, prestados sob o regime de direito privado e abertos à concorrência, que são acometidos de deveres de natureza pública, notadamente os de universalização e de continuidade.
Essa concepção é sobremaneira distinta do conceito de serviço público à francesa, posto que contraria a lógica de que os serviços de relevância pública deveriam ser titularizados, pelo estado e, por conseguinte, excluídos de um regime concorrencial. Pelo contrário, a regulação dos SEIG aponta para uma regulação pró-competição, seja no mercado, seja pelo mercado – pautada pela subsidiariedade –, de tal modo que qualquer restrição a essa diretriz predicará a devida fundamentação do Poder Público, tendo em vista a necessidade de atingimento de outras finalidades.
Essa nova vertente dos SEIG foi sendo construída, pela interpretação conferida pelo Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias (TJCE), de acordo com três pilares: (i) na garantia da liberdade iniciativa; (ii) na primazia da concorrência, quando técnica e economicamente viável; e (iii) na garantia da preservação de interesses gerais, que justifiquem restrições a essa liberalização.
Com base nessas diretrizes, busca-se consagrar, assim, o valor da livre-iniciativa como um direito que deve ser considerado, pela Administração Pública, na prestação de seus serviços, valor este que pode, inclusive, interditar a atuação pública. Não se mostra mais suficiente, se é que algum dia o tenha sido, que a Administração Pública reserve para si, na qualidade de titular da modelagem e da prestação, determinada atividade com base em fórmulas abstratas, como prerrogativas estatais e os conceitos de serviços públicos e interesse público.
Assim como nos Serviços de Interesse Econômico Geral Europeu, os serviços públicos, previstos pelo ordenamento jurídico brasileiro, não predicam a existência de um regime jurídico-administrativo único, que encerraria a subtração dessas atividades do regime de liberdade e da livre concorrência. É que, como se extrai da leitura dos artigos 21 e 175, o Estado tem a obrigação de prestar determinadas atividades essenciais (v.g. portos, telecomunicações, aeroportos), mas isso não significa que essas prestações tenham de ser levadas efeito, por meio de um regime jurídico único, dotado de prerrogativas para o estado e excluído de um regime concorrencial.
De fato, considerando que, à luz da Constituição brasileira, os princípios da liberdade de iniciativa e da livre concorrência são orientadores da intervenção do Estado no Domínio, a livre concorrência deverá ser aplicada aos serviços públicos, exceto se, por meio de um processo de ponderação de interesses, tenha de ser restrita em face de outros princípios.
Tanto é verdade que o artigo 16 da Lei nº 8.987/1995 (Lei Geral de Concessões), dispõe que “a outorga de concessão ou permissão não terá caráter de exclusividade, salvo no caso de inviabilidade técnica ou econômica justificada no ato a que se refere o artigo 5º desta Lei”. É dizer, não há qualquer antijuridicidade, per se, na instauração de um regime concorrencial assimétrico entre exploradores de títulos habilitantes delegatórios e autorizatórios.
Porém, a concorrência também não deve ser absoluta. Ela não é um fim em si, mas um instrumento para o atendimento de outros valores constitucionais, dentre os quais se incluem a prestação de adequados serviços à população. Entre estes dois pilares é que devem ser entendidas as restrições e condicionamentos próprios da regulação estatal. Se, por um lado, não pode haver uma interdição à concorrência (inclusive no que toca aos novos entrantes para além dos concessionários ou permissionários estatais), por outro, deve haver restrição à atuação de agentes se e quando esta colocar em risco a continuidade ou a universalidade da oferta dos serviços à população.
Caberá, pois, à regulação, como uma metodologia de equilíbrio de subsistemas jurídico-econômicos, modular “as doses” de concorrência que incidirão na prestação de serviços de utilidade pública, de modo que possam ser equacionados: de um lado, o direito do cidadão de receber serviços essenciais; e, de outro, o direito de exploração de atividades econômicas por particulares. Tudo isso resultará na instituição de uma adequada assimetria regulatória, assim caracterizada pela distinção de atividades, aplicando-se lhes uma maior ou menor dose de concorrência, de acordo com as peculiaridades de cada uma delas.
A intensidade diferenciada de regulação em prol da abertura à concorrência tem lugar em diversos setores como é o caso, por exemplo, do setor de energia elétrica. Neste setor, as diversas atividades deste serviço – que outrora eram prestadas sob o regime monopolístico – foram desverticalizadas nos seguintes segmentos: (i) geração, que pode ser explorada por concessionário, produtor independente (PIE) e autoprodutor (respectivamente, previstos nos artigos 4°, § 5°, I, 5º, III e 11, todos da Lei n° 9.074/1995); (ii) transmissão, atividade de condução da energia elétrica explorada por concessionários e autorizatários (artigos 14 e 17, respectivamente, da Lei n° 9.074/1995); (iii) distribuição, atividade de fornecimento de energia aos consumidores, prestada por concessionários (artigo 4°, § 3°, da Lei n° 9.074/1995); e (iv) comercialização, atividade exercida por agentes econômicos comercializadores (artigo 26, II, da Lei n° 9.427/1996) . Do mesmo modo, no setor de Telecomunicações, o serviço de Telefonia Fixo Comutado (STFC), à luz do disposto no artigo 65 da Lei nº 9.472/1997, poderá ser prestado sob distintos regimes regulatórios.
2. CONECTANDO-SE COM A REALIDADE JURÍDICA E ADMINISTRATIVA
Quatro precedentes jurisprudenciais trabalham com as noções desenvolvidas na aula de hoje.
Nesse sentido, cite-se o Recurso Extraordinário (RE) nº 49.988/SP, julgado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que teve por objeto a limitação ao exercício da atividade de serviços funerários. O caso envolvia a Lei nº 5.562/1958, do Município de São Paulo, a qual instituiu, sob forma autárquica, o Serviço Funerário.
Em específico, o art. 2º, da Lei Municipal nº 5.562/1958 estabeleceu um plexo de atividades funerárias que passaram a ser qualificadas como serviço público, “a cargo exclusivo do Serviço Funerário”. Veja-se alguns dispositivos da referida lei, que, embora já tenha sido revogada, constitui exemplo do objeto desta aula:
Lei Municipal nº 5.562/1958
Art. 2º Consideram-se serviços públicos municipais, a cargo exclusivo do Serviço Funerário, os seguintes:
a) a fabricação e o fornecimento de caixões mortuários para falecidos na cidade de São Paulo;
b) a remoção dos mortos, salvo nos casos em que o transporte deva ser feito pelo serviço de polícia;
c) os transportes de coroas nos cortejos fúnebres;
d) a ornamentação das câmaras mortuárias;
e) a instalação e manutenção de velórios, ressalvados o disposto na Lei nº 3773, de 24 de junho de 1949;
f) o transporte fúnebre, por estrada de rodagem, deste Município para outra localidade.
Art. 3º O Serviço Funerário prestará, também, quando solicitados, serviços auxiliares ou complementares, tais como:
a) fornecimento de aparelho de ozona;
b) fornecimento de urnas;
c) providências administrativas junto aos cartórios de Registro Civil e Cemitérios.
Parágrafo Único. Poderão ainda ser executados outros serviços de interesses, relacionados com a finalidade da Autarquia, a critério da Administração municipal.
Art. 4º A forma de execução dos serviços funerários será objeto de regulamentação no qual se definirão as classes os padrões os tipos de caixões e paramentos a espécie de transportes e serviços auxiliares.Parágrafo Único. Enquanto não for baixado o regulamento os serviços serão regidos pelas normas vigentes que não contrariem as disposições desta lei.quem tem o poder e a obrigação de cuidar dos assuntos não contidos na enumeração. (…)
O cerne da controvérsia residia em saber se a proibição ao exercício de atividades funerárias, por particulares, era inconstitucional, tendo em vista que o art. 141, § 14, da Constituição de 1946 (vigente à época), assegurava o “livre exercício de qualquer profissão, observadas as condições de capacidade que a lei estabelecer”. A decisão do Supremo Tribunal Federal encampou a tese de acordo com a qual os serviços funerários constituem serviços públicos e dizem respeito ao “peculiar interesse” dos municípios, cuja autonomia era assegurada pelo art. 28, II, ‘b’, da Constituição de 1946, vazado nos seguintes termos:
Constituição de 1946
Art. 28 – A autonomia dos Municípios será assegurada:
I – pela eleição do Prefeito e dos Vereadores;
II – pela administração própria, no que concerne ao seu peculiar interesse e, especialmente,
a) à decretação e arrecadação dos tributos de sua competência e à aplicação das suas rendas;b) à organização dos serviços públicos locais.
Na visão do STF, o art. 28, II, ‘b’, da Constituição de 1946 assegurava aos Municípios a autonomia para definir e organizar os serviços públicos locais. Dessa forma, os Municípios poderiam, por conveniência e mediante lei própria, retirar determinadas atividades, tais como as funerárias, do “comércio comum”, alçando-as à categoria de serviço público. O acórdão restou assim ementado:
RE nº 49.988/SP
Supremo Tribunal Federal
Órgão julgador: Segunda Turma; Relator: Ministro Hermes Lima;
Julgamento: 30/08/1963
Publicação: 03/10/1963EMENTA: ORGANIZAÇÃO DE SERVIÇOS PUBLICOS MUNICIPAIS. ENTRE ESTES ESTAO OS SERVIÇOS FUNERARIOS. OS MUNICÍPIOS PODEM, POR CONVENIENCIA COLETIVA E POR LEI PROPRIA, RETIRAR A ATIVIDADE DOS SERVIÇOS FUNERARIOS DO COMERCIO COMUM….)
Em outra oportunidade, o Supremo Tribunal Federal se manifestou sobre a distinção entre serviço público e atividade econômica em sentido estrito, no âmbito da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 46/DF. Cuida-se de ação proposta, pela Associação Brasileira das Empresas de Distribuição (ABRAED), tendo como arguida a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT). Em síntese, a ABRAED alegava que a ECT promovia uma “verdadeira cruzada nacional para expurgar a concorrência e banir do mercado todas as empresas” de distribuição, sob o argumento de que possuiria “o monopólio postal absoluto e, assim, toda e qualquer correspondência, seja ela uma lista telefônica, uma conta de luz ou uma encomenda, estaria sob o conceito de carta”.
A inicial apontou que o monopólio da ECT era inconstitucional, pois configurava eliminação da livre concorrência e do primado da iniciativa privada, garantidos pelos arts. 1º, IV e 170, caput, IV e parágrafo único, da Constituição. O voto condutor do acórdão, prolatado pelo então Ministro Eros Grau e acatado por maioria, fez uma distinção entre o regime de privilégio, de que se reveste a prestação dos serviços públicos, consagrada no art. 175 da CRFB, do regime de monopólio sob o qual, algumas vezes, a exploração de atividade econômica em sentido estrito é empreendida pelo Estado, na forma do art.177 da CRFB.
De acordo com seu entendimento, o monopólio diz respeito à atividade econômica em sentido estrito, ao passo que a exclusividade da prestação dos serviços públicos é uma expressão de uma situação de privilégio. Daí porque, a seu ver, os regimes jurídicos sob os quais são prestados os serviços públicos importam em que sua “prestação seja desenvolvida sob privilégios, inclusive, em regra, o da exclusividade na exploração da atividade econômica em sentido amplo a que corresponde a sua prestação”.
No caso concreto, de acordo com o então Ministro Eros Grau, para que uma empresa privada pudesse ser admitida à prestação do serviço postal, que seria qualificada como serviço público (art. 21, X, da Constituição), seria necessário que a Constituição “dissesse que o serviço postal é livre à iniciativa privada”, tal como o fez os arts. 199 e 209 em relação à saúde e à educação, serviços que podem ser prestados independentemente de concessão ou permissão.
Em síntese, o voto vencedor considerou que: (i) as atividades econômicas em sentido amplo seriam um gênero, que teria como espécies os serviços públicos e atividades econômicas em sentido estrito; (ii) os serviços públicos implicam em situações de privilégio na prestação da atividade; (iii) as atividades econômicas em sentido estrito podem ser reservadas ao Estado, em regime de monopólio; e (iv) o serviço postal é serviço público, e não atividade econômica em sentido estrito. A decisão restou assim ementada:
ADPF nº 46/DF
Supremo Tribunal Federal
Órgão julgador: Tribunal Pleno; Relator: Ministro Marco Aurélio
Relator do acórdão: Ministro Eros Grau
Julgamento: 05/08/2009; Publicação: 26/02/2010
EMENTA: ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. EMPRESA PÚBLICA DE CORREIOS E TELEGRÁFOS. PRIVILÉGIO DE ENTREGA DE CORRESPONDÊNCIAS. SERVIÇO POSTAL. CONTROVÉRSIA REFERENTE À LEI FEDERAL 6.538, DE 22 DE JUNHO DE 1978. ATO NORMATIVO QUE REGULA DIREITOS E OBRIGAÇÕES CONCERNENTES AO SERVIÇO POSTAL. PREVISÃO DE SANÇÕES NAS HIPÓTESES DE VIOLAÇÃO DO PRIVILÉGIO POSTAL. COMPATIBILIDADE COM O SISTEMA CONSTITUCIONAL VIGENTE. ALEGAÇÃO DE AFRONTA AO DISPOSTO NOS ARTIGOS 1º, INCISO IV; 5º, INCISO XIII, 170, CAPUT, INCISO IV E PARÁGRAFO ÚNICO, E 173 DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. VIOLAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DA LIVRE CONCORRÊNCIA E LIVRE INICIATIVA. NÃO-CARACTERIZAÇÃO. ARGUIÇÃO JULGADA IMPROCEDENTE. INTERPRETAÇÃO CONFORME À CONSTITUIÇÃO CONFERIDA AO ARTIGO 42 DA LEI N. 6.538, QUE ESTABELECE SANÇÃO, SE CONFIGURADA A VIOLAÇÃO DO PRIVILÉGIO POSTAL DA UNIÃO. APLICAÇÃO ÀS ATIVIDADES POSTAIS DESCRITAS NO ARTIGO 9º, DA LEI.
1. O serviço postal – conjunto de atividades que torna possível o envio de correspondência, ou objeto postal, de um remetente para endereço final e determinado – não consubstancia atividade econômica em sentido estrito. Serviço postal é serviço público.
2. A atividade econômica em sentido amplo é gênero que compreende duas espécies, o serviço público e a atividade econômica em sentido estrito. Monopólio é de atividade econômica em sentido estrito, empreendida por agentes econômicos privados. A exclusividade da prestação dos serviços públicos é expressão de uma situação de privilégio. Monopólio e privilégio são distintos entre si; não se os deve confundir no âmbito da linguagem jurídica, qual ocorre no vocabulário vulgar.
3. A Constituição do Brasil confere à União, em caráter exclusivo, a exploração do serviço postal e o correio aéreo nacional [artigo 20, inciso X].
4. O serviço postal é prestado pela Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos – ECT, empresa pública, entidade da Administração Indireta da União, criada pelo decreto-lei n. 509, de 10 de março de 1.969.
5. É imprescindível distinguirmos o regime de privilégio, que diz com a prestação dos serviços públicos, do regime de monopólio sob o qual, algumas vezes, a exploração de atividade econômica em sentido estrito é empreendida pelo Estado.
6. A Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos deve atuar em regime de exclusividade na prestação dos serviços que lhe incumbem em situação de privilégio, o privilégio postal.
7. Os regimes jurídicos sob os quais em regra são prestados os serviços públicos importam em que essa atividade seja desenvolvida sob privilégio, inclusive, em regra, o da exclusividade. 8. Argüição de descumprimento de preceito fundamental julgada improcedente por maioria. O Tribunal deu interpretação conforme à Constituição ao artigo 42 da Lei n. 6.538 para restringir a sua aplicação às atividades postais descritas no artigo 9º desse ato normativo.
Outro caso paradigmático diz respeito à Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 1.668/DF, relatada pelo Ministro Edson Fachin, no âmbito da qual foram contestados diversos dispositivos[1] da Lei nº 9.472/1997, que dispõe sobre a organização dos serviços de telecomunicações, bem como cria a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), nos termos da Emenda Constitucional (EC) nº 8/1995.
De acordo com os partidos que propuseram a ADI, a Constituição não autoriza a criação de entidades que detenham independência administrativa, pois haveria um esvaziamento da competência do Poder Executivo. Além disso, em sua visão, os aspectos relevantes dos serviços de telecomunicações não poderiam ser disciplinados por ato normativo das agências, sob pena de usurpação da competência do Congresso Nacional, tampouco os serviços poderiam ser prestados, concomitantemente, em regimes público e privado.
O voto condutor do acórdão observou que, na redação originária da Constituição de 1988, os serviços telefônicos, telegráficos, de transmissão de dados e demais serviços públicos de telecomunicação eram explorados diretamente ou mediante concessão por empresas estatais, ao passo que, após a EC nº 8/1995, inaugurou-se um “novo paradigma referente aos serviços de telecomunicações, mediante a possibilidade de privatização do serviço”, nos termos da nova redação do art. 21, XI, da Constituição, cujo teor é o seguinte:
Art. 21 da Constituição de 1988
Art. 21. Compete à União: (…) XI – explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, os serviços de telecomunicações, nos termos da lei, que disporá sobre a organização dos serviços, a criação de um órgão regulador e outros aspectos institucionais.
Em relação ao regime jurídico do serviço de telecomunicações, os partidos que propuseram a ADI alegaram que tal serviço é essencialmente público, razão pela qual seria inconstitucional a previsão de sua prestação concomitantemente em regimes público e privado. De acordo com a inicial, a prestação do serviço, no regime privado, seria delegada, por meio de simples autorização, enquanto, no regime público, seria imprescindível a adoção de procedimento licitatório prévio à outorga. Tal fato implicaria em violação ao primado da isonomia (art. 5º, da Constituição).
Sobre o tema, o ministro relator destacou que o art. 21, XI, da Constituição, permite a exploração dos serviços de telecomunicações “diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão”. Em sua leitura constitucional, o dispositivo permite a coexistência de regimes jurídicos, inclusive a exploração por meio de autorização, o que “significa conferir à Administração a faculdade de instituir um regime privado, submetido à livre concorrência”. Além disso, o voto destacou o fato de que os autores discordavam da possibilidade de outorga do serviço de telecomunicações por meio de autorização, regida pelo regime privado. Ocorre que, em sua visão, essa foi “justamente a intenção da privatização do Sistema Telebrás, qual seja, permitir o ingresso de atores privados na prestação desse serviço público”.
Nesse quadrante, o entendimento fixado, pelo STF, foi o de que o constituinte reformador operou uma modificação de todo o sistema que rege as telecomunicações, possibilitando a sua outorga para a atividade privada, “por meio de simples autorização”, bem como a coexistência com os regimes de concessão e de permissão. A decisão restou assim ementada:
ADI nº 1.668/DF
Órgão julgador: Tribunal Pleno; Relator: Ministro Edson Fachin
Julgamento: 1º/03/2021; Publicação: 23/03/2021
EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI GERAL DE TELECOMUNICAÇÕES. LEI 9.472/1997. CRIAÇÃO DE ÓRGÃO REGULADOR. INDEPENDÊNCIA ADMINISTRATIVA. SUPERVISÃO MINISTERIAL. NÃO CONHECIMENTO. COMPETÊNCIAS ANATEL. DELEGAÇÃO LEGISLATIVA AO PODER EXECUTIVO NÃO VERIFICADA. PODER NORMATIVO DAS AGÊNCIAS REGULATÓRIAS. SUBMISSÃO AO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE. COMPETÊNCIA PARA REALIZAÇÃO DE BUSCA E APREENSÃO PELO ÓRGÃO REGULADOR. IMPOSSIBILIDADE. LICITAÇÃO. OBEDIÊNCIA À COMPETÊNCIA PRIVATIVA DA UNIÃO. ESTABELECIMENTO DE PREGÃO E CONSULTA COMO MODALIDADE LICITATÓRIA. POSSIBILIDADE. OUTORGA DE SERVIÇOS MEDIANTE CONCESSÃO, PERMISSÃO OU AUTORIZAÇÃO. GLOSA AO PROCEDIMENTO SIMPLIFICADO PREVISTO PARA A PERMISSÃO DE SERVIÇO PÚBLICO. POSSIBILIDADE DE REGRAS ESPECÍFICAS PREVISTAS EM LEI PARA O SETOR DE TELECOMUNICAÇÕES. REGIME JURÍDICO DOS SERVIÇOS. CONCOMITÂNCIA ENTRE REGIMES PÚBLICO E PRIVADO. AUSÊNCIA DE VEDAÇÃO CONSTITUCIONAL. PREVISÃO DE PRESTAÇÃO DO SERVIÇO POR MEIO DE AUTORIZAÇÃO. AÇÃO DIRETA CONHECIDA EM PARTE E, NA PARTE CONHECIDA, JULGADA PARCIALMENTE PROCEDENTE.
1. Por ocasião da apreciação do pedido de medida cautelar, por votação unânime, o Plenário não conheceu da ação direta, quanto aos arts. 8º e 9º, da Lei nº 9.472/1997.
2. A competência atribuída ao Chefe do Poder Executivo, para expedir decreto em ordem a instituir ou eliminar a prestação do serviço em regime público, em concomitância ou não com a prestação no regime privado, aprovar o plano geral de outorgas do serviço em regime público e aprovar o plano de metas de universalização do serviço prestado em regime público está em consonância com o poder regulamentar previsto no art. 84, IV, parte final, da Constituição Federal.
3. O poder de expedir normas quanto à outorga, prestação e fruição dos serviços de telecomunicações no regime público e no regime privado é imanente à atividade regulatória da agência, a quem compete, no âmbito de sua atuação e nos limites do arcabouço normativo sobre o tema, disciplinar a prestação dos serviços. Interpretação conforme à Constituição para fixar o entendimento de que a competência da Agência Nacional de Telecomunicações para expedir tais normas subordina-se aos preceitos legais e regulamentares que regem matéria.
4. A busca e posterior apreensão, efetuada sem ordem judicial, com base apenas no poder de polícia de que é investida a agência, mostra-se inconstitucional diante da violação ao disposto no princípio da inviolabilidade de domicílio, à luz do art. 5º, XI, da Constituição Federal.
5. A competência atribuída ao Conselho Diretor da ANATEL para editar normas próprias de licitação e contratação deve observar o arcabouço normativo atinente às licitações e contratos. Interpretação conforme à Constituição, no ponto, em observância ao princípio da legalidade.
6. Diante da especificidade dos serviços de telecomunicações, é válida a criação de novas modalidades licitatórias por lei de mesma hierarquia da lei geral de licitações. Contudo, sua disciplina deve ser feita por meio de lei, e não de atos infralegais, em obediência aos artigos 21, XI, e 22, XXVII do texto constitucional.
7. A possibilidade de concomitância de regimes público e privado de prestação do serviço, assim como a definição das modalidades do serviço são questões estritamente técnicas, da alçada da agência, a quem cabe o estabelecimento das bases normativas de cada matéria relacionada à execução, à definição e ao estabelecimento das regras peculiares a cada serviço. Assim, a atribuição à agência da competência para definir os serviços não desborda dos limites de seu poder regulatório.
8. Não viola a competência legislativa da União lei federal que disciplina licitações no âmbito de Agência reguladora. Ademais, o legislador atende ao comando do art. 21, XI, da Constituição Federal, ao editar normas específicas atinentes à organização do serviço de telecomunicações. 9. Ação direta conhecida em parte, e, na parte conhecida, julgada parcialmente procedente.
Em outro precedente, o Supremo Tribunal Federal se manifestou sobre a constitucionalidade da assimetria regulatória introduzida, no setor de transporte coletivo interestadual e internacional de passageiros (TRIIP). Cuida-se da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5.549/DF, julgada em conjunto com a ADI nº 6.270/DF, proposta em face dos dispositivos legais (art. 3º, da Lei nº 12.996/2014 e regulação posterior) que permitiram a prestação regular de serviços de TRIIP, desvinculados da exploração da infraestrutura, por meio de autorização, o que importava na inexigibilidade prévia licitação. O fundamento para a propositura das ADIs residia na pretensa ofensa aos arts. 21, XII, ‘e’, 37, caput e XXI e 175, caput, da CRFB, tendo em vista que a delegação desse serviço público, sem a precedência de procedimento licitatório, ofenderia o dever fundamental de licitar.
O voto condutor do acórdão, prolatado pelo Ministro Luiz Fux, indicou que o cerne da ação residia na “forma de outorga dos serviços de transportes desvinculados da exploração de infraestrutura, que o dispositivo impugnado alterou de permissão para autorização”, sendo que “o principal reflexo da norma consiste na inexigibilidade do procedimento licitatório prévio, embora permissão e autorização se diferenciem também por outros elementos”. De acordo com o referido voto, na sistematização adotada pela Constituição, desenvolvida sob várias vertentes pela doutrina jusadministrativista, as formas de outorga da prestação de serviços de titularidade estatal são a concessão, a permissão e a autorização.
De acordo com o ministro, significa dizer que, ao prever que a União também poderia explorar um rol de serviços mediante autorização, a Constituição elegeu setores que, em função de sua dinâmica de funcionamento, abrigam atividades em que a oferta pode ser compartilhada entre os agentes econômicos, tendo em vista que tais atividades são caracterizadas, em geral, “por custos de entrada menores, por uma cadeia produtiva subdividida em etapas e por diferentes perfis de usuários”.
Na visão do Ministro Luiz Fux, o desafio regulatório, diante de tal assimetria entre as formas de delegação de serviço público, consiste em encontrar o grau ótimo de intervenção estatal perante a participação de agentes privados, de acordo com suas características, buscando eficiências produtiva e alocativa. Dessa forma, a seu ver, a abertura à competição de um setor não significa, necessariamente, descontrole ou desregulamentação. Nas suas palavras o “acompanhamento incisivo da agência reguladora garante que os serviços autorizados estão sendo cumprido de forma adequada, bem como que os seus resultados são satisfatórios”.
O voto citou, ainda, experiências em que a autorização prevista constitucionalmente foi empregada para a habilitação de particulares, tendo sido constatado que “sua implantação não se dá de forma isolada, mas antes inaugura um modelo de assimetria regulatória, em que sob um mesmo setor podem recair diferentes modalidades de outorga”.
A título exemplificativo, citou-se a Lei Geral de Telecomunicações (Lei nº 9.472/1997), a qual dispõe sobre a autorização de serviços no regime privado, quando preenchidas as condições objetivas e subjetivas necessárias, devendo os termos da autorização conterem previsão expressa quanto à ausência de qualquer exclusividade contratual. Além disso, fez referência ao setor elétrico, que fora reestruturado, notadamente a partir da quebra da cadeia produtiva nas fases de geração, transmissão, distribuição e comercialização. Para cada uma dessas atividades, a Lei nº 9.074/1995 estabelece um regramento específico da interação entre o Poder Concedente e as empresas. Nos setores de transporte aquaviário e aéreo, a assimetria regulatório se instituiu por intermédio de autorizações, “consideradas as particularidades do setor regulado e a necessidade de abertura do mercado”.
No que se refere ao setor de transporte rodoviário, objeto das ADIs, o STF, indicou que a assimetria regulatória também possui respaldo constitucional. De acordo com o STF, a Constituição elencou o TRIIP na esfera de escolha da via de delegação pela União, na forma do art. 21, XII, ‘e’. O texto constitucional traz a previsão de que compete à União explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão os serviços de transporte rodoviário interestadual e internacional de passageiros.
Para além disso, a seu ver, o marco regulatório infraconstitucional também consagra a instituição de uma assimetria regulatória no setor de transporte terrestre. Isso porque a Lei nº 10.233/2001 estabeleceu que haverá concessão quando a exploração do serviço for associada à infraestrutura, permissão quando se tratar de transporte regular interestadual semiurbano e autorização nos casos de regime de afretamento ou transporte coletivo regular interestadual e internacional de passageiros.
De acordo com a decisão, o que se observa é que o instituto da autorização “não mais se restringe à interpretação tradicionalmente conferida, qual seja, permitir contratações emergenciais e transitórias”. A maior frequência com que o instituto tem sido instrumentalizado, sobretudo no setor de infraestrutura, “descortina uma tendência da Administração, amparada na expressa previsão constitucional”.
Disso decorre que, nos termos da decisão “a assimetria regulatória estabelecida no artigo 21, XII, ‘e’, da Constituição Federal assegurou a possibilidade de se outorgar a prestação de transporte rodoviário interestadual e internacional de passageiros por autorização”, uma vez que “havia restrições de oferta suficientemente capazes de justificar a oposição de barreiras à entrada de cunho regulatório no setor, o que incentivou a descentralização dos poderes à Agência Reguladora”.
Em síntese conclusiva, o STF julgou improcedente a ação, com base nos seguintes fundamentos: (i) inexistência de restrições à oferta que justifiquem a oposição de barreiras à entrada de concorrentes no setor; (ii) descentralização normativa à Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) de poderes para assegurar a observância de aspectos qualitativos inerentes à adequada prestação do serviço TRIIP; e (iii) universalização do serviço e demais benefícios à população usuária, decorrentes da abertura do mercado para novos entrantes. O acórdão restou assim ementado:
ADI nº 5.549/DF
Órgão julgador: Tribunal Pleno; Relator: Ministro Luiz Fux
Julgamento: 29/03/2023; Publicação: 1º/06/2023
EMENTA: ADMINISTRATIVO. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ARTIGOS 13, INCISOS IV E V, ALÍNEA “E”; E 14, INCISO III, ALÍNEA “J”, DA LEI 10.233, DE 5 DE JUNHO DE 2001, NA REDAÇÃO CONFERIDA PELO ARTIGO 3º DA LEI 12.996, DE 18 DE JUNHO DE 2014. TRANSPORTE COLETIVO INTERESTADUAL E INTERNACIONAL DE PASSAGEIROS. DISPOSIÇÕES QUESTIONADAS QUE ALTERAM, DE PERMISSÃO PARA AUTORIZAÇÃO, O REGIME DE OUTORGA DA PRESTAÇÃO REGULAR DE SERVIÇOS DE TRANSPORTE TERRESTRE COLETIVO DE PASSAGEIROS DESVINCULADOS DA EXPLORAÇÃO DE INFRAESTRUTURA. ALEGAÇÃO DE OFENSA AOS ARTIGOS 37, CAPUT E INCISO XXI, E 175, CAPUT, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. INEXISTÊNCIA. O USO DA AUTORIZAÇÃO PARA A OUTORGA DE SERVIÇOS PÚBLICOS POSSUI PREVISÃO CONSTITUCIONAL, INCLUSIVE NO QUE DIZ RESPEITO A SERVIÇOS DE TRANSPORTE INTERESTADUAL E INTERNACIONAL DE PASSAGEIROS (ARTIGO 21, INCISO XII, ALÍNEA “C”, DA CONSTITUIÇÃO). EXIGÊNCIA CONSTITUCIONAL DE LICITAÇÃO QUE NÃO SE EXIGE DA AUTORIZAÇÃO DE SERVIÇOS PÚBLICOS. PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. CABE AO LEGISLADOR INFRACONSTITUCIONAL ESTABELECER A FORMA DE DELEGAÇÃO DE DETERMINADOS SERVIÇOS PÚBLICOS, ADMITINDO-SE QUE A SUA EXPLORAÇÃO, QUANDO NÃO REALIZADA DIRETAMENTE, SEJA FEITA MEDIANTE CONCESSÃO, PERMISSÃO OU AUTORIZAÇÃO. AÇÃO CONHECIDA E JULGADO IMPROCEDENTE O PEDIDO, DEVENDO O PODER EXECUTIVO E A ANTT PROCEDEREM À EDIÇÃO DE NOVOS DIPLOMAS, EM ATENÇÃO ÀS EXIGÊNCIAS DO ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO E DA LEI 14.298/2022.
1. A assimetria regulatória estabelecida no artigo 21, XII, e, da Constituição Federal assegurou a possibilidade de se outorgar a prestação de transporte rodoviário interestadual e internacional de passageiros (TRIIP) por autorização de serviço público, máxime em razão da inexistência de restrições à oferta que justifiquem a oposição de barreiras à entrada de concorrentes no setor; da descentralização à agência reguladora de poderes para assegurar a observância de aspectos qualitativos inerentes à adequada prestação do serviço; e de a abertura do mercado para novos entrantes contribuir para a universalização do serviço e demais benefícios à população usuária.
2. A escolha estratégica pela descentralização operacional do setor, que se insere na esfera democraticamente reservada à deliberação política, porquanto concomitante à centralização normativa, confere maior normatividade ao comando constitucional contido no caput do artigo 174 da Constituição Federal, bem como aos princípios constitucionais que orientam à atuação da Administração Pública e a Ordem Econômica (BINENBOJM, Gustavo. Assimetria regulatória no setor de transporte coletivo de passageiros. In O Direito Administrativo na Atualidade. Org . WALD, Arnold et al São Paulo: Malheiros, 2017. p. 510).
3. As finalidades precípuas de concretização dos princípios da isonomia, da moralidade e de obtenção da proposta mais vantajosa são perseguidas pela ampla concorrência na execução do serviço público, via competição no mercado, porquanto inexistentes restrições à oferta que justifiquem a oposição de barreiras à entrada, hipótese em que a competição para o mercado (competition for the market), via licitação, criaria uma exclusividade ineficiente e ilegítima, ao restringir o acesso dos possíveis interessados.
4. A previsão constitucional de prestação do TRIIP por meio de autorização (Art. 21, XI, “e”) afasta a incidência do artigo 175 da Constituição Federal, que impõe prévio procedimento licitatório especificamente às modalidades de outorga que pressupõem a excludência em razão da contratação pela Administração com determinado particular.
5. A descentralização normativa à Agência Nacional de Transportes Terrestres de poderes para assegurar a observância de aspectos qualitativos promove a eficiência, adequação e atualidade da prestação do serviço autorizado, ao se estabelecer requisitos técnicos e de regularidade para a habilitação dos interessados, assim como a uniformidade das condições de contratação ditadas pelo Poder Público, necessariamente homogêneas e previamente divulgadas.
6. O compromisso regulatório celebrado entre setor público e as empresas prestadores do serviço, que corresponde às amarras a que se cingem as partes, não se esgota nos termos de edital do poder concedente, a que se somam a expertise e a acuidade da regulação setorial e concorrencial, em atuação coordenada em prol da segurança jurídica, economicidade dos investimentos e defesa dos usuários (COUTINHO, Diogo R. Direito e Economia Política na Regulação de Serviços Públicos. Saraiva: São Paulo, 2014. p. 91).
7. A abertura do setor de transporte rodoviário interestadual e internacional a novos entrantes amplia a concorrência em um serviço inegavelmente essencial, cuja relevância para os usuários e para o desenvolvimento nacional torna ainda mais expressivas as externalidades advindas da livre concorrência, como o incremento tecnológico, o aumento da qualidade e a redução dos custos.
8. Ex positis, o artigo 3º da Lei n. 12.996/2014, ao outorgar o serviço público de transporte rodoviário coletivo internacional e interestadual de passageiros por meio de autorização, insere-se no espaço de deliberação política delineado no artigo 21, XII, e , da Constituição, de modo que, observados os valores constitucionalmente tutelados, em especial os princípios que orientam a Administração Pública e a ordem econômica, não se reveste de inconstitucionalidade . 9. Ação direta de inconstitucionalidade conhecida e julgado improcedente o pedido, devendo o Poder Executivo e a ANTT ajustarem-se às exigências do Tribunal de Contas da União e às novas disposições trazidas pela Lei 14.298/2022.
[1] Em específico: arts. 8º, 9º, 18, I, II e III, 19, IV, X, XV, 22, II, 54, parágrafo único, 55, 56, 57, 58, 59, 65, 66, 69, 89, 91, 119 e 210, todos da Lei nº 9.472/1997.
3. DEBATENDO
1. Qual o entendimento mais sedimentado, na doutrina brasileira, sobre o regime concorrencial dos serviços públicos?
2. O fato de uma atividade ser de competência material de uma entidade da Federação a exclui, aprioristicamente, de um regime exploratório concorrencial?
3. Quais são as externalidades positivas experimentadas por um regime concorrencial?
4. É juridicamente possível a instituição de concorrência entre prestadores de serviços públicos?
5. O que é assimetria regulatória?
6. Qual a diferença entre monopólio e serviços públicos?
7. Qual a natureza jurídica da autorização que veicula a exploração de atividades de competência material das entidades da Federação?
8. A partir do conteúdo da aula, comente e reflita sobre as decisões relatadas acima.
4. APROFUNDANDO
MARQUES NETO, Floriano de Azevedo; FREITAS, Rafael Véras de. Uber, WhatsApp, Netflix: os novos quadrantes da publicatio e da assimetria regulatória. Revista de Direito Público da Economia – RDPE, Belo Horizonte, ano 14, n. 56, p. 75-108, 2016.
MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. A Nova Regulação dos Serviços Públicos. Revista de Direito Administrativo – RDA, v. 228, p. 13-30, 2002.
JUSTEN, Monica Spezia. O Serviço Público na Perspectiva do Direito Comunitário Europeu. Revista de Direito Público da Economia – RDPE, Belo Horizonte, ano 1, n. 1, p. 137-175, 2003.
SHIRATO, Vitor Rhein. Livre Iniciativa nos Serviços Públicos. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2012.
SARMENTO, Daniel. Ordem Constitucional Econômica, Liberdade e Transporte Individual de Passageiros: o “Caso Uber”. Revista Brasileira de Direito Público – RBDP, Belo Horizonte, ano 13, n. 50, 2015, p. 9-39.