Roteiro de Aula

Autorização: unilateral, discricionária e precária?

Algo muda quando a autorização conhece o serviço público

1. CONHECENDO O BÁSICO

O que é necessário para fechar uma rua residencial? Como alguns cantores e bandas conseguem se apresentar nos espaços públicos da cidade? E bancas de jornais, como são instaladas? Como blocos de carnaval conseguem desfilar?

Essas são algumas atividades, bastante rotineiras, que dependem de uma avaliação prévia do poder público.

Todos esses exemplos precisam de autorização da administração pública. Mas o que é, de verdade, essa tal autorização? A nosso ver, precisamos colocar a autorização no divã e lhe perguntar: quem você é?

Um administrativista clássico saberia de antemão a resposta da autorização. “Eu sou unilateral, discricionária e precária”, diria ela. Unilateral, pois emana apenas da vontade da administração – o particular apenas pede, mas quem decide é o poder público. Discricionária, porque está sujeita ao juízo do poder público. Precária, porque eventual “mudança de humor” do gestor público não traria grandes prejuízos: ancorada na discricionariedade, a administração poderia outorgá-la ou revogá-la a qualquer tempo, sem dever de indenização ao particular.[1]

A autorização também andava com outros dois conceitos. Com o poder de polícia, que é geralmente definido como a prerrogativa da administração pública para vedar ou restringir comportamentos de particulares – é o caso das multas de trânsito, por exemplo. E também com as atividades econômicas em sentido estrito, usualmente caracterizadas como atividades dos particulares, em busca de lucro, em ambiente competitivo – uma rede de supermercados é um bom exemplo.

As atividades econômicas em sentido estrito são contrapostas ao serviço público – esse muito ligado ao Estado, que deve prestar e organizar sua estrutura.

Durante muito tempo, esse foi o posicionamento majoritário da doutrina, que se acostumou a associar a autorização apenas às situações comuns do dia a dia.

Mas a discussão parece ter mudado, especialmente depois que a autorização encontrou atividades que autores chamavam de “serviços públicos”.

Vamos ver como o direito brasileiro trata o tema?

A autorização circula no ordenamento há tempos. A Lei nº 6.009/73, por exemplo, definia que aeroportos poderiam ser explorados mediante autorização (art. 1º). Todavia, o tema ganhou novos contornos em 1988.

A Constituição da República, após ser modificada por emenda constitucional em 1995, passou a prever a autorização em seu art. 21. Determinou que ela é instrumento de delegação dos serviços de telecomunicações, radiodifusão sonora e transporte rodoviário interestadual de passageiros. E atribuiu a competência para exploração desses e outros serviços, inclusive via autorização, à União:

Art. 21 da Constituição da República de 1988

Art. 21. Compete à União

(…)

XI – explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, os serviços de telecomunicações, nos termos da lei, que disporá sobre a organização dos serviços, a criação de um órgão regulador e outros aspectos institucionais; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 8, de 15/08/95)

XII – explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão:

a) os serviços de radiodifusão sonora, e de sons e imagens; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 8, de 15/08/95)

b) os serviços e instalações de energia elétrica e o aproveitamento energético dos cursos de água, em articulação com os Estados onde se situam os potenciais hidroenergéticos;

c) a navegação aérea, aeroespacial e a infra-estrutura aeroportuária;

d) os serviços de transporte ferroviário e aquaviário entre portos brasileiros e fronteiras nacionais, ou que transponham os limites de Estado ou Território;

e) os serviços de transporte rodoviário interestadual e internacional de passageiros;

f) os portos marítimos, fluviais e lacustres;

Mas a Constituição da República trouxe outra disposição sobre prestação de serviços públicos – e a autorização ficou de fora da festa.

Art. 175 da Constituição da República de 1988

Art. 175. Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos.

Como, então, conciliar essas duas disposições? Floriano de Azevedo Marques Neto afirma que a autorização, prevista no art. 21, somente pode ser utilizada para explorar atividade em regime de direito privado, e não no regime público do art. 175:

Concessões

Por Floriano de Azevedo Marques Neto
(Belo Horizonte: Fórum, 2015, p. 118)

Autorização não se presta a delegar coisa alguma, pelo simples fato de que o comando “autorizar” remete a admitir, possibilitar, anuir, e ao comando “cometer”. O que ocorre na autorização de serviço público, prevista na CF (art. 21, incs. XI e XII), é que por ela se admite a exploração de um serviço público (mormente já delegado a outro particular) a outros privados que queiram explorar em regime privado. Só assim se pode dar coerência hermenêutica à conjugação do art. 21 vis-à-vis o art. 175 da Constituição.

Mas o que é esse regime de direito privado? Sugerimos que você veja as leis transcritas nessa aula e tente localizar alguns elementos comuns nas autorizações (será que esses elementos existem mesmo?).


[1] É o que observamos em DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo – 38ª Edição. 38. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2025, p. 232; JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo – 15ª Edição. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2024, p. 206.

2. CONECTANDO-SE COM A REALIDADE JURÍDICA E ADMINISTRATIVA

Antes de entrar no debate, vamos conhecer algumas das leis que trataram de autorização.

A Lei de Portos (Lei nº 12.815/2013) determinou que a exploração das instalações portuárias localizadas fora da área do porto organizado deve ocorrer mediante autorização. Assim, a autorização foi desenhada como a “outorga de direito à exploração de instalação portuária localizada fora da área do porto organizado e formalizada mediante contrato de adesão” (art. 2º, inc. XII).

Na prática, isso significa que empresas interessadas em operar terminais de uso privado, estações de transbordo de cargas, instalações portuárias públicas de pequeno porte e instalações portuárias de turismo poderão requerer a autorização à Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq) a qualquer tempo.

Mas, calma: a expressão “a qualquer tempo” pode parecer que bastaria o particular “bater na porta” da Antaq e, pronto: autorização outorgada.

Na verdade, o processo é um pouco mais burocrático. Ao receber a solicitação, a Antaq deverá abrir um procedimento para verificar a existência de outros interessados naquela região, o que implica na apresentação de uma série de documentos e comprovações pelo particular. Por qual motivo a Antaq verifica se outras empresas têm interesse na região? Qual a relação entre concorrência e autorização aqui? E será que a autorização da Antaq é mesmo discricionária?

Mais recentemente, a Lei das Ferrovias (Lei nº 14.273/21) também trouxe a figura da autorização. Separou a exploração de ferrovias em dois regimes: a concessão, no regime de direito público; e a autorização, no regime de direito privado (art. 7º). A autorização é concedida por meio de chamamento público (art. 19).

Fora do setor de transportes, há outro serviço que também incorporou a exploração por meio de autorização – e ele está mais próximo do nosso dia a dia do que imaginamos.

Você já ouviu falar nas apostas de quota fixa? Talvez não por esse nome, mas… e nas bets?

Diferentemente de jogos como Mega Sena, Quina e Lotomania, que funcionam em regime de concessão, essa modalidade lotérica foi concebida como um serviço público a ser explorado em ambiente concorrencial, mediante autorização:

Lei n.º 14.790/2023

Capítulo II

Do Regime de Exploração

Art. 4º As apostas de quota fixa serão exploradas em ambiente concorrencial, mediante prévia autorização a ser expedida pelo Ministério da Fazenda, nos termos desta Lei e da regulamentação de que trata o § 3º do art. 29 da Lei nº 13.756, de 12 de dezembro de 2018.

Art. 5º A autorização para exploração das apostas de quota fixa terá natureza de ato administrativo discricionário, praticado segundo a conveniência e oportunidade do Ministério da Fazenda, à vista do interesse nacional e da proteção dos interesses da coletividade, observadas as seguintes regras:

I – não estará sujeita a quantidade mínima ou máxima de agentes operadores;

II – terá caráter personalíssimo, inegociável e intransferível; e

III – poderá, a critério do Ministério da Fazenda, ser outorgada com prazo de duração de 5 (cinco) anos.

§ 1º A autorização de que trata este artigo poderá ser revista sempre que houver, na pessoa jurídica autorizada, fusão, cisão, incorporação, transformação, bem como transferência ou modificação de controle societário direto ou indireto.

§ 2º A revisão de autorização já concedida dar-se-á mediante processo administrativo específico, que poderá ser instaurado de ofício, nos termos da regulamentação, assegurados ao interessado o contraditório e a ampla defesa.

Anos antes da edição da Lei nº 14.790/2023, o Supremo Tribunal Federal havia reconhecido a natureza de serviço público dos serviços lotéricos, condicionando sua exploração aos regimes de concessão e permissão, conforme trecho do voto do Relator, Min. Gilmar Mendes.

STF, ADPFs 492 e 493 e ADI 4.986

Rel. Min. Gilmar Mendes
(j. 23/09/2020)

Um corolário do enquadramento da exploração lotérica enquanto serviço público é a possibilidade de o legislador autorizar a prestação deste serviço público na modalidade indireta, por meio de concessão ou permissão. Isso porque a Constituição Federal de 1988 estabeleceu como cláusula genérica, no art. 175, que “incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos”. Assim, desde que observado o princípio da licitação, é lícito que o legislador abra a possibilidade de exploração das loterias por meio de concessão ou permissão. Esta opção, como visto, foi exercida pelo legislador ordinário na década de 1940, quando se passou a permitir a exploração do serviço de loteria a concessionários de comprovada idoneidade moral e financeira, nos termos do art. 2º do Decreto-Lei 2.980, de 24 de janeiro, de 1941.

Qual foi a intenção do legislador ao conferir formas tão distintas de exploração às bets e às modalidades lotéricas tradicionais? Por que faz sentido permitir que vários agentes operadores prestem um serviço e, no outro, restringir a competição a apenas um explorador?

Agora vamos às polêmicas. A Lei Geral de Telecomunicações (Lei nº 9.472/1997) marcou a utilização da autorização na infraestrutura. Isso porque ela trouxe uma roupagem diferente para a “autorização”:

Lei n.º 9.472/1997 – Lei Geral de Telecomunicações (redação atual)

Capítulo II

Da Autorização de Serviço de Telecomunicações

Art. 131. A exploração de serviço no regime privado dependerá de prévia autorização da Agência, que acarretará direito de uso das radiofreqüências necessárias.

§ 1° Autorização de serviço de telecomunicações é o ato administrativo vinculado que faculta a exploração, no regime privado, de modalidade de serviço de telecomunicações, quando preenchidas as condições objetivas e subjetivas necessárias.

§ 2° A Agência definirá os casos que independerão de autorização.

§ 3° A prestadora de serviço que independa de autorização comunicará previamente à Agência o início de suas atividades, salvo nos casos previstos nas normas correspondentes.

§ 4° A eficácia da autorização dependerá da publicação de extrato no Diário Oficial da União.

Art. 132. É condição objetiva para a obtenção de autorização de serviço a disponibilidade de radiofrequência necessária, no caso de serviços que a utilizem.

Art. 133. São condições subjetivas para obtenção de autorização de serviço de interesse coletivo pela empresa:

I – estar constituída segundo as leis brasileiras, com sede e administração no País;

II – não estar proibida de licitar ou contratar com o Poder Público, não ter sido declarada inidônea ou não ter sido punida, nos dois anos anteriores, com a decretação da caducidade de concessão, permissão ou autorização de serviço de telecomunicações, ou da caducidade de direito de uso de radiofreqüência;

III – dispor de qualificação técnica para bem prestar o serviço, capacidade econômico-financeira, regularidade fiscal e estar em situação regular com a Seguridade Social;

IV – não ser, na mesma região, localidade ou área, encarregada de prestar a mesma modalidade de serviço.

Parágrafo único. A Agência deverá verificar a situação de regularidade fiscal da empresa relativamente a entidades integrantes da administração pública federal, podendo, ainda, quando se mostrar relevante, requerer comprovação de regularidade perante as esferas municipal e estadual do Poder Público

Por qual razão a Lei Geral de Telecomunicações trouxe uma definição de autorização? Ela contraria a definição dada pela doutrina majoritária? Será que a Lei Geral de Telecomunicações errou, foi atécnica, e na verdade usou o termo “autorização” de forma equivocada?

E mais: o que, nesse caso, significa dizer que a autorização se presta a atividades sob regime privado?

Na época da publicação da lei, houve uma certa reação por administrativistas mais acostumados com a concepção tradicional de autorização – unilateral, discricionária e precária, lembra?

Vejamos, por exemplo, o que Maria Sylvia Zanella di Pietro escreveu:

Autorização do serviço de telecomunicações

Por Maria Sylvia Zanella di Pietro
(Parcerias na administração pública: concessão, permissão, franquia, terceirização, parceria público-privada e outras formas. Atlas, 2009, pp. 140-142)

Na realidade, a doutrina do direito administrativo brasileiro é praticamente unânime em distinguir autorização e licença pela discricionariedade da primeira e pela vinculação da segunda. No caso de que se trata, tem-se que entender que o vocábulo autorização, na Lei nº 9.472, foi utilizado indevidamente, no lugar de licença.

Fácil é intuir a razão dessa confusão terminológica, em nada benéfica para os estudiosos do direito administrativo e constitucional. O legislador precisava dar uma aparência de constitucionalidade ao tratamento imprimido à matéria de serviço de telecomunicações. Como a Constituição fala em autorização, permissão e concessão, era necessário manter essa terminologia, ainda que de autorização não se trate. (…)

Com isso, a Lei nº 9.472 inverteu o sentido da norma do art. 21, XI, com relação a uma parte dos serviços de telecomunicações; esse serviço, cuja titularidade foi atribuída em sua totalidade à União, que tem a possibilidade de delegar a execução ao particular, passou a ser considerado atividade privada, que a União só pode executar por motivo de segurança nacional ou interesse coletivo relevante, conforme definido em lei. Com a agravante de que a lei não definiu as hipóteses em que o serviço é considerado de interesse restrito e, portanto, passível de prestação em regime privado; deixou à Anatel a incumbência de fazê-lo, em mais uma ofensa ao princípio da legalidade.

É evidente que a sistemática adotada na lei, nessa parte, afronta o art. 21, XI, da Constituição, que não permite essa distinção entre os dois tipos de serviços de telecomunicações. O que a lei fez foi privatizar (não a execução do serviço, como ocorre na autorização, permissão ou concessão) mas a própria atividade ou, pelo menos, uma parte dela, o que não encontra fundamento na Constituição.

Dessa distinção e da necessidade de dar uma aparência de constitucionalidade à lei resultou a opção pelo instituto da autorização e não da licença. Quando a atividade é livre à iniciativa privada, seu exercício constitui direito subjetivo do particular que satisfaça a todos os requisitos legais; à Administração Pública cabe apenas verificar se os requisitos estão presentes e, em caso afirmativo, conferir a licença, como ato vinculado, e não a autorização, que deve ser reservada aos atos discricionários.

A sistemática adotada na Lei nº 9.472, se considerada vantajosa em relação a anterior, dependeria, para ter validade, de alteração da Constituição. Sua adoção por lei que se revela, sob muitos aspectos, inconstitucional constitui apenas um dos exemplos dos avanços do direito administrativo em relação ao constitucional, em franco desprestígio à nossa Constituição e ao princípio da segurança jurídica, que fica seriamente abalado por normas legais de duvidosa ou, às vezes, flagrante inconstitucionalidade, e, portanto, de incontestável fragilidade, porque passíveis de impugnação perante o Poder Judiciário.

Para a autora, quais elementos a Constituição da República exige que autorizações tenham? E por qual motivo a diferença entre autorização e licença é relevante?

Mas há visões diferentes. Ao comentar sobre a inovação introduzida pela Lei Geral de Telecomunicações, Jacintho Arruda Câmara entendeu que existem múltiplas noções de autorização:

Autorizações administrativas vinculadas: o exemplo do setor de Telecomunicações

Por Jacinto Arruda Câmara
(In: ARAGÃO, Alexandre Santos de; MARQUES NETO, Floriano de Azevedo (Coord.). Direito administrativo e seus novos paradigmas. 2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2017, p. 597.)

A realidade jurídica revela a convivência de diversas acepções do termo autorização. O conceito de autorização nos serviços de radiodifusão não é o mesmo do empregado nos de telecomunicações. O setor elétrico possui a sua concepção, o de serviços de transporte de passageiros já emprega outra. A mesma expressão (autorização) que serve para legitimar a instalação de uma banca de jornal também é empregada pelo legislador como instrumento de regularização do funcionamento de bancos (instituições financeiras). E nessa linha pode se seguir com infindáveis exemplos de aplicações próprias do termo.

A ausência de um modelo pode ser frustrante ou angustiante para quem se acostumou com fórmulas pré-concebidas (mesmo que artificiais). No entanto, esta é a situação presente no ordenamento jurídico brasileiro de há muito. A utilização dada ao termo na LGT, certamente por sua notoriedade e repercussão, chamou a atenção da doutrina para o descompasso entre suas lições e a prática. Seria importante que, em vez de tratar esse eloquente exemplo de defasagem como um “equívoco” do legislador, a doutrina aproveitasse a oportunidade para reformular suas afirmações em torno do instituto.

Para tanto, acredito que o caminho básico é abandonar a pretensão de se cunhar um conceito único do instituto. Na verdade, é impossível adotar, com base num exame fiel do direito positivo, um conceito geral que envolva todas as aplicações do instrumento autorização. É inegável a existência de autorizações vinculadas, que podem conviver com autorizações de outro tipo, marcadas pela discricionariedade e precariedade. É o que se extrai do ordenamento jurídico brasileiro, com respaldo na experiência internacional.

Você concorda com qual autor?

Outro setor também revela a importância de discutir se devemos conceituar autorização: o transporte de passageiros.

 A Lei nº 10.233/01 estabeleceu regras para o transporte de passageiros e, em diversas passagens, evocou a autorização:

Lei n.º 10.233/01 (redação atual)

Art. 12. Constituem diretrizes gerais do gerenciamento da infra-estrutura e da operação dos transportes aquaviário e terrestre:

I – descentralizar as ações, sempre que possível, promovendo sua transferência a outras entidades públicas, mediante convênios de delegação, ou a empresas públicas ou privadas, mediante outorgas de autorização, concessão ou permissão, conforme dispõe o inciso XII do art. 21 da Constituição Federal; […]

Art. 13. Ressalvado o disposto em legislação específica, as outorgas a que se refere o inciso I do caput do art. 12 serão realizadas sob a forma de:

I – concessão, quando se tratar de exploração de infra-estrutura de transporte público, precedida ou não de obra pública, e de prestação de serviços de transporte associados à exploração da infra-estrutura;

IV – permissão, quando se tratar de:

a) prestação regular de serviços de transporte terrestre coletivo interestadual semiurbano de passageiros desvinculados da exploração da infraestrutura;           

V – autorização, quando se tratar de:

a) prestação não regular de serviços de transporte terrestre coletivo de passageiros, vedada a venda de bilhete de passagem;

b) prestação de serviço de transporte aquaviário;

c) exploração de infraestrutura de uso privativo; e

e) prestação regular de serviços de transporte terrestre coletivo interestadual e internacional de passageiros desvinculados da exploração da infraestrutura. […]

Art. 43. A autorização, ressalvado o disposto em legislação específica, será outorgada segundo as diretrizes estabelecidas nos arts. 13 e 14 e apresenta as seguintes características:

I – independe de licitação;

II – é exercida em liberdade de preços dos serviços, tarifas e fretes, e em ambiente de livre e aberta competição;

III – não prevê prazo de vigência ou termo final, extinguindo-se pela sua plena eficácia, por renúncia, anulação ou cassação.

Nesse sentido, a legislação estabeleceu que a autorização independe de licitação – no entanto, a Constituição da República determinou que a exploração de serviço público ocorrerá “diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação” (art. 175). Prestar serviço público mediante autorização, sem licitação, é constitucional?

E mais: a autorização prevista na Lei nº 10.233/01 é dada sem licitação. A Constituição da República permite isso? Qual sua opinião?

O assunto logo chegou ao Supremo Tribunal Federal. A Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.549 debateu a validade dessas normas. Vejamos trechos da ementa:

STF, ADI 5.549

Rel. Min. Luiz Fux
(j. 29/03/2023)

1. A assimetria regulatória estabelecida no artigo 21, XII, e, da Constituição Federal assegurou a possibilidade de se outorgar a prestação de transporte rodoviário interestadual e internacional de passageiros (TRIIP) por autorização de serviço público, máxime em razão da inexistência de restrições à oferta que justifiquem a oposição de barreiras à entrada de concorrentes no setor; da descentralização à agência reguladora de poderes para assegurar a observância de aspectos qualitativos inerentes à adequada prestação do serviço; e de a abertura do mercado para novos entrantes contribuir para a universalização do serviço e demais benefícios à população usuária. […]

3. As finalidades precípuas de concretização dos princípios da isonomia, da moralidade e de obtenção da proposta mais vantajosa são perseguidas pela ampla concorrência na execução do serviço público, via competição no mercado, porquanto inexistentes restrições à oferta que justifiquem a oposição de barreiras à entrada, hipótese em que a competição para o mercado (competition for the market), via licitação, criaria uma exclusividade ineficiente e ilegítima, ao restringir o acesso dos possíveis interessados.

4. A previsão constitucional de prestação do TRIIP por meio de autorização (Art. 21, XI, “e”) afasta a incidência do artigo 175 da Constituição Federal, que impõe prévio procedimento licitatório especificamente às modalidades de outorga que pressupõem a excludência em razão da contratação pela Administração com determinado particular. […]

8. Ex positis, o artigo 3º da Lei n. 12.996/2014, ao outorgar o serviço público de transporte rodoviário coletivo internacional e interestadual de passageiros por meio de autorização, insere-se no espaço de deliberação política delineado no artigo 21, XII, e , da Constituição, de modo que, observados os valores constitucionalmente tutelados, em especial os princípios que orientam a Administração Pública e a ordem econômica, não se reveste de inconstitucionalidade. […]

Na prática, o que o Supremo Tribunal Federal decidiu? Você concorda com o raciocínio apresentado na ementa? Como a decisão se relaciona com o debate entre Maria Sylvia Zanella di Pietro e Jacintho Arruda Câmara?

Ainda, a Constituição da República prevê autorização nos setores de transportes (art. 21, XI, e), abordado no item 4 da ementa acima). Mas, como falamos antes, existem autorizações em outros setores – até em apostas! Será que, nesses outros casos, a decisão do Supremo Tribunal Federal seria a mesma?

Vera Monteiro comentou o julgado acima. Vamos ver sua posição:

Autorização para prestação de serviço público

STF confirmou a constitucionalidade do modelo

Por Vera Monteiro
(JOTA, 06/06/2023. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/publicistas/autorizacao-para-prestacao-de-servico-publico)

Comecei a estudar direito administrativo em 1995, década em que o Estado deixava de ser o grande prestador de serviços públicos, projetos de privatização surgiam com frequência e novos serviços chacoalhavam as classificações teóricas sobre o tema.

Havia uma reverência à dicotomia serviço público x atividade econômica. O próprio conceito de serviço público, que esteve na origem do direito administrativo e, por isso, bem amplo, veio minguando ao longo dos anos. A tecnologia já dava sinais de que o mundo se transformaria. Houve uma espécie de mutação da natureza das coisas, que passou a seguir lógicas econômica e política.

As emendas à Constituição evidenciaram que nunca houve um projeto constitucional sobre como o Estado deve prestar serviços à coletividade. Não há mecanismo de exploração uniforme, regime jurídico universal e objetivos comuns a atingir. Diria mais: a Constituição não distinguiu concessão, permissão e autorização. São atos jurídicos que viabilizam a parceria com terceiros em prol da execução de atividades de interesse público. Mas quais atividades? Quais os direitos e obrigações dos envolvidos? Para responder, há dois caminhos. Um é recorrer a dogmas e desconsiderar os últimos 30 anos de história. Outro é analisar as normas e os fatos.

O Supremo Tribunal Federal (ADI 5549/DF, j. em 29/3/2023) escolheu analisar as normas ao confirmar a constitucionalidade dos dispositivos da Lei 10.233, de 2001, que tratam da prestação de serviço de transporte rodoviário coletivo interestadual e internacional de passageiros sem prévia licitação, mediante autorização.

O relator, ministro Luiz Fux, disse que a exigência de licitação pioraria o serviço e geraria transtorno para os usuários. Alertou que é preciso respeitar a escolha do legislador pelo modelo de autorização, tendo em vista o art. 21, XII, “e” da Constituição. Seu voto foi seguido pelos ministros André Mendonça, Nunes Marques, Alexandre de Moraes, Dias Toffoli, Gilmar Mendes e Roberto Barroso.

Venceu o entendimento de que o referido dispositivo constitucional abre espaço legítimo para assimetria regulatória, a qual permite níveis de intervenção regulatória distintos via concessão, permissão e autorização. Ainda, a ausência de barreiras à entrada de concorrentes no setor afastaria a incidência do art. 175 e contribuiria para a abertura do mercado e para a universalização dos serviços, em benefício dos usuários. Em suma, neste setor, licitação é ineficiente porque cria exclusividade não desejável.

Ficaram vencidos os ministros Edson Fachin, Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia e Rosa Weber por entenderem que a norma violaria os arts. 175 e 37, caput, XXI e um suposto “dever fundamental de licitar”. O acórdão tem 280 páginas. Os votos vencidos articularam dogmas tradicionais (como o de que a autorização é ato administrativo unilateral, precário e discricionário, e o de que não pode haver outorga de serviço público sem licitação). Já os vencedores reconheceram que a autorização é instrumento legítimo de delegação de serviço público; e que a assimetria regulatória do art. 21, XII, “e” da Constituição atende à dinâmica do serviço, tal como ocorre nos setores de telecomunicações, elétrico, portos e de transporte aquático e aéreo. Com isso, o STF confirmou que generalidades não servem para analisar a dinâmica dos serviços públicos.

A autora nos conta sua posição sobre a autorização para prestar serviços públicos. Mas ela também apresenta ideias sobre o papel da doutrina de direito administrativo. Qual a opinião da autora? Você concorda com ela?

A essa altura, você já deve ter notado que a autorização é uma figurinha carimbada nas conversas entre administrativistas. O trecho abaixo, por exemplo, separa autorização em dois tipos: para explorar atividade econômica em sentido estrito e para prestar serviços públicos. Será que essa divisão ajuda ou atrapalha?

Ao comentar sobre o assunto, Fernando Vilella de Andrade Vianna traz um elemento adicional: a necessidade (ou não) da transferência de ativos do poder público ao particular. Assim, nos casos em que a atividade for desvinculada da infraestrutura, e puder ser explorada em regime concorrencial, estaremos diante da autorização.

A autorização como instrumento de delegação de serviço público

Regulação estatal será mais ou menos intensa a depender da natureza da atividade, não da forma de delegação

Por Fernando Villela de Andrade Vianna
(JOTA, 15/02/2023. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-autorizacao-como-instrumento-de-delegacao-de-servico-publico#_ftnref2)

Qual seria então o alcance do art. 175, da Constituição Federal, que estabelece expressamente os regimes de permissão ou concessão, sempre mediante licitação, para a prestação do serviço público? É importante lembrar que a licitação é, antes de tudo, um instrumento que busca concretizar, no campo prático, os princípios da isonomia e da impessoalidade nas relações público-privadas.

Assim, quando a delegação de determinado serviço público envolver a transferência temporária de ativos de propriedade estatal para o particular, é incontestável que o regime a ser adotado deverá ser o de permissão ou concessão, nos exatos termos do art. 175. Exemplo disso é o que ocorre nos setores de aeroporto e de rodovia.

Ora, a racionalidade econômica não permite a duplicação dessas infraestruturas para a exploração por outros particulares. É exatamente por isso que os serviços públicos sob concessão ou permissão são monopólios naturais: estes são mais baratos para a sociedade pela prestação exclusiva de um único prestador do que pela concorrência com múltiplos prestadores, que neste caso incorreriam em investimentos vultosos para duplicar a infraestrutura necessária (ainda que fosse possível e inexistissem limitações geológicas).

O mesmo racional se aplica aos aeroportos: como não é economicamente viável construir um aeroporto ao lado de outro já existente, o constituinte originário estabeleceu que esses serviços públicos só podem ser prestados pela União (diretamente) ou por particulares mediante concessão ou permissão (indiretamente), sempre através de licitação (art. 175).

E no caso de serviços públicos desvinculados de infraestrutura? Nessa hipótese, quer-nos parecer que caminhou bem o legislador ordinário ao estabelecer o regime de autorização, na medida em que permitirá um maior dinamismo na delegação desse serviço público e um incremento no número de empresas prestadoras, em benefício da própria sociedade. Este é exatamente o caso do transporte rodoviário interestadual e internacional de passageiros, previsto expressamente no art. 21, XII, “e”, da Constituição Federal, e que foi objeto de alteração legislativa na forma de delegação em 2014, por meio da Lei 12.996/2014.

Dessa forma, enquanto no regime de permissão ou concessão a concorrência entre parceiros privados para a sua prestação acontece “pelo” mercado (por meio da licitação), no regime de autorização esta se dá “no” mercado. Enquanto no primeiro a disputa ocorre para definir quem será o prestador exclusivo em nome do Estado, no segundo esta ocorre pela preferência do usuário por meio do binômio preço-qualidade, observados os princípios aplicáveis ao serviço público e a regulação infralegal.

Por fim, você deve ter reparado que a decisão do Supremo Tribunal Federal mencionou a assimetria regulatória. Vamos ler um pouco sobre o tema:

Limites das assimetrias regulatórias e contratuais: o caso dos aeroportos

Regulação estatal será mais ou menos intensa a depender da natureza da atividade, não da forma de delegação

Por Floriano de Azevedo Marques Neto e Marina Fontão Zago
(Limites das assimetrias regulatórias e contratuais: o caso dos aeroportos. Revista de Direito Administrativo, v. 277, n. 1, p. 175-201, 2018.)

Os subsistemas regulatórios visam a melhor compreender as especificidades do setor, trazendo soluções e instrumentos que poderão atender, de forma mais eficaz e efetiva, aos fins visados pela política pública para aquela cadeia econômica. Diferenciações entre esses ordenamentos setoriais são, pois, quase inerentes à lógica da moderna regulação estatal, pautada em intervenção quase técnica.

No entanto, dentro de um mesmo subsistema, podemos encontrar regras com incidências diversas, conforme diferentes características, seja da atividade exercida, seja do sujeito que a exerce. Nesses casos, há uma modulação da regulação estatal, que acolhe os diversos atores de um mesmo setor de forma diferenciada conforme o fator de discrímen especificado pela regulação, ensejando direitos e obrigações específicos. Como consequência, atores de um mesmo setor ou mesmo de uma mesma cadeia setorial podem estar sujeitos a regras diferenciadas, cada qual experimentando ônus diversos decorrentes da regulação estatal. Tais distinções são referidas como “assimetrias regulatórias” – expressão capaz de captar os mais variados tipos e formas de modulação regulatória que pode ser prevista para determinado setor.

De fato, costuma-se referir a “assimetria regulatória” para os casos em que o ordenamento jurídico admite a exploração de uma atividade em regimes jurídicos distintos, trazendo, para cada qual, regras específicas de atuação. Nesse caso, atores de um mesmo setor poderão estar sujeitos a regras – obrigações e direitos – diferentes, conforme o regime no qual exploram suas atividades. É o exemplo do setor de telecomunicações (com a dicotomia entre serviços prestados no regime público ou no regime privado conforme Lei nº 9.472/1997) e do setor de portos (com a dicotomia entre exploração de portos organizados e instalações portuárias, conforme Lei nº 12.815/2013).

Veja que os exemplos que os autores dão (Lei Geral de Telecomunicações e Lei de Portos) são setores com autorização. Há uma associação comum: a autorização para atividades concorrenciais, sem delegação de um ativo público; a concessão e a permissão para atividades não concorrenciais, com delegação de um ativo público. O que importa aqui é que essas formas de prestação convivem entre si, dentro do mesmo setor.

Talvez o conceito geral de autorização tenha ficado para trás. Há algumas características comuns nos diversos setores, mas será que elas são suficientes para delinear um conceito geral de autorização? Parece que essa nova autorização (na verdade, essas novas autorizações) servem para estruturar certas atividades, com grandes diferenças entre si. Colocada no divã, talvez a autorização apenas responda “vou mostrando como sou, e vou sendo como posso…”.

3. DEBATENDO

  1. Precisamos encontrar um conceito para a autorização? Há alguma consequência prática?
  2. Qual é o papel dos autores de direito administrativo ao estudar autorização?
  3. Várias leis preveem autorizações, mas com conteúdos jurídicos que parecem ser diferentes. O legislador está errado?
  4. Posso prestar serviço público por autorização? O que a Constituição da República nos diz?
  5. Prestar serviço público por autorização é forma de fugir da licitação?
  6. Quais as consequências práticas do art. 175 da Constituição da República não mencionar autorização?
  7. Existem elementos comuns nas previsões de autorizações das diversas leis? Se sim, quais?
  8. Existe uma relação entre autorização e concorrência?
  9. A dicotomia entre atividade econômica em sentido estrito e serviço público nos ajuda a entender a autorização?
  10. A Constituição da República deixa espaço para o legislador desenhar o regime jurídico da autorização?
  11. Existe alguma diferença central entre autorização e licença?

4. APROFUNDANDO

ARAGÃO. Alexandre Santos de. Regime jurídico da autorização portuária no Brasil: serviços públicos ou atividades privadas regulamentadas? Revista dos Tribunais, v. 946, ago./2014, p. 15-45.

ARAGÃO, Alexandre Santos de. Atividades privadas regulamentadas: autorização administrativa, poder de polícia e regulação. Revista de Direito Público da Economia – RDPE, Belo Horizonte, ano 3, n. 10, p. 9-48, abr./jun. 2005.

CÂMARA, Jacintho Arruda. Autorizações administrativas vinculadas: o exemplo do setor de telecomunicações. In: ARAGÃO, Alexandre Santos de; MARQUES NETO, Floriano de Azevedo (Coord.). Direito administrativo e seus novos paradigmas. 2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2017. p. 587-598.

MOREIRA, Egon Bockmann. Autorizações e contratos de serviços públicos. Revista de Direito Público da Economia ­ RDPE, Belo Horizonte, ano 8, n. 31,jul./set. 2010.

NESTER, Alexandre Wagner. Autorizações de serviços públicos. 2019. Tese (Doutorado) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019.

OLIVEIRA, Gustavo Justino de; FERRAZ, Pedro da Cunha. Dilemas regulatórios na prestação do serviço de transporte coletivo rodoviário interestadual e internacional de passageiros: a autorização de serviço público na Lei nº 10.233/01 ante as inovações tecnológicas que impactam o setor de transportes. In: TOJAL, Sebastião Botto de Barros; SOUZA, Jorge Henrique de Oliveira (Coord.). Direito e infraestrutura: rodovias e ferrovias – 20 anos da Lei nº 10.233/2001. Belo Horizonte: Fórum, 2021. v. 2, p. 103-121.

SCHIRATO, Vitor Rhein. Livre Iniciativa Nos Serviços Públicos. 2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2022.

SUNDFELD, Carlos Ari. Autorização de serviços de telecomunicações: os requisitos para sua obtenção. A&C – Revista de Direito Administrativo & Constitucional, Belo Horizonte, v. 4, n. 15, p. 193–211, 2007.