1. CONHECENDO O BÁSICO
O conceito de ato administrativo é seguramente um dos elementos mais fundamentais para o estudo do direito administrativo. No contexto da formação do campo, essa ideia deu autonomia epistêmica à nova disciplina, especializando aquele ato jurídico que seria próprio do direito administrativo. De certa forma, estudar o direito administrativo era investigar a natureza, as condições e os elementos do ato administrativo. Da mesma forma, o conceito também serviu para diferenciar o produto da deliberação administrativa daqueles próprios das outras atribuições do estado nacional. Nesse sentido, o ato administrativo cumpriu um papel para o Poder Executivo, da mesma forma que a lei e a sentença cumpriram para o Poder Legislativo e Judiciário.
Nessa arquitetura da separação dos Poderes, caberia ao ato administrativo representar a expressão da vontade do Estado por meio das ações que performariam as funções da administração pública. Em sua essência, o ato administrativo é uma decisão tomada por autoridades ou órgãos administrativos que, seguindo normas específicas, buscam cumprir objetivos legais e sociais estabelecidos. Essa definição, que pode parecer simples, envolve um longo percurso teórico, histórico e prático, que ajudou a moldar a forma como os atos administrativos são confeccionados e interpretados no contexto atual.
Origens e evolução do conceito
O conceito de ato administrativo tem raízes que remontam à própria formação do campo do direito administrativo, remetendo aos princípios que surgiram com o Iluminismo e as transformações sociais e políticas ocorridas após a Revolução Francesa. Uma das primeiras manifestações desse conceito aparece na Lei de 1790, que proibia os tribunais de revisarem as decisões administrativas, reforçando a ideia de separação dos poderes: o Legislativo faria as leis, o Judiciário julgaria e o Executivo, através de atos administrativos, implementaria as políticas públicas. Esse princípio foi formulado para garantir que cada poder tivesse seu papel bem definido, evitando abusos e assegurando certa autonomia ao poder administrativo.
Com o passar dos anos, o direito administrativo passou a distinguir atos administrativos de outros tipos de atos (como atos judiciais ou legislativos), organizando o conceito como um tipo específico de manifestação da vontade estatal. Teóricos como Hauriou e Vedel trouxeram discussões importantes sobre a natureza e a finalidade dos atos administrativos. De modo geral, a compreensão tradicional da doutrina se deu no sentido de interpretar o ato administrativo como uma declaração de vontade com poder de execução, justificando sua autoridade na soberania do Estado. Dessa forma, o Estado possuía o monopólio da força e da capacidade de regular, unindo esses poderes para assegurar a ordem e o bem comum. O ato, por sua vez, teria presunção de legitimidade, e seria imperativo e auto executório.
Estrutura e Elementos do Ato Administrativo
Historicamente, o espaço de controle sobre a produção do ato administrativo foi bastante reduzido. De qualquer forma, para que se pudesse deduzir a sua legalidade e legitimidade política, fazia-se importante que o ato administrativo atendesse certos requisitos formais. Na doutrina tradicional, dizia-se que o ato administrativo se confeccionava de forma adequada quando corretos seus elementos de competência, forma e legalidade do objeto. Depois, inseriram-se novas exigências a partir da ideia de que o ato deveria ter a sua perfeição jurídica também pelo controle da sua adequação às finalidades e motivações próprias das atividades da Administração Pública. Nesse sentido, o controle sobre a produção do ato deveria levar em consideração:
- Competência – a partir da análise acerca da autoridade da pessoa ou órgão responsável por emitir o ato. Sem competência, o ato é considerado nulo;
- Forma – no que tange ao cumprimento das formalidades exigidas por lei, como assinatura, publicação ou motivação;
- Objeto Lícito – em referência à adequação do objeto do ato ao conteúdo juridicamente lícito;
- Finalidade – especificamente quanto ao objetivo do ato, que deve sempre buscar o interesse público;
- Motivo – quanto à razão concreta para a decisão tomada, baseada em fatos e circunstâncias.
Esses elementos asseguram a legalidade e a legitimidade do ato administrativo, fornecendo uma base para que ele fosse avaliado e controlado, tanto pelo Judiciário quanto pela própria administração.
Controle de Legalidade e Limites de Discricionariedade
Embora os atos administrativos sejam executados com certa autonomia, essa autonomia não é ilimitada. O princípio da legalidade exige que todos os atos administrativos sejam executados em conformidade com a lei. Isso significa que a administração pública deve seguir as normas legais, os princípios éticos e as diretrizes constitucionais, evitando abusos e excessos.
Uma das discussões mais complexas sobre o ato administrativo é o uso da discricionariedade. Discricionariedade é a liberdade que o administrador tem de escolher a melhor forma de aplicar a lei em situações que a lei não regula detalhadamente. No entanto, essa liberdade não significa arbitrariedade; ela deve sempre respeitar os princípios do interesse público e da razoabilidade. Após a Constituição de 1988, a doutrina e a jurisprudência vêm aumentando o ambiente de controle sobre o ato administrativo, autorizando a intervenção de outros poderes no sentido de uma maior avaliação sobre a decisão discricionária, tendo em vista um conceito de legalidade mais ampliado do que a mera conferência das formalidades próprias do ato.
Modernização e Transformações no Ato Administrativo
Com o aumento da complexidade do mundo social e o fortalecimento de um ambiente jurídico mais adesivo à presença dos direitos fundamentais, o conceito de ato administrativo passou por importantes mudanças. Desde os anos 1990, novas abordagens surgiram, ampliando os limites do controle sobre a administração pública e introduzindo a ideia de processualidade. Hoje, o ato administrativo não é mais visto como uma simples decisão isolada tomada a partir das prerrogativas da Administração, mas como parte de um processo maior que envolve transparência, participação e motivação clara.
A Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), reformada em 2018, reforçou a necessidade de a administração pública justificar suas decisões, considerando os impactos práticos para a sociedade. O objetivo é evitar decisões baseadas em valores abstratos, exigindo uma análise detalhada dos efeitos do ato e sua conformidade com o interesse público. Isso contribui para o fortalecimento da legitimidade das decisões administrativas, aproximando a administração dos cidadãos e promovendo maior justiça.
Essa transformação é complementada por uma abordagem que busca conciliar a autoridade administrativa com os direitos e garantias dos cidadãos, em especial, o direito à participação e ao devido processo legal. Esse movimento se reflete em mecanismos que possibilitam uma participação mais ativa dos cidadãos, dando origem a novos instrumentos de cooperação e consenso entre o Estado e a sociedade. O processo decisório da Administração deve considerar, portanto, interesses diretos e indiretos de Administrados, que passam a ter capacidade de intervenção na forma e na matéria a ser decidida pelos agentes públicos.
Em síntese, o ato administrativo, ao longo de sua evolução, passou por uma reinterpretação significativa, que ampliou seus limites e fortaleceu sua ligação com os direitos fundamentais. Se antes era visto como uma manifestação unilateral da vontade do Estado, hoje ele é entendido como uma ação que exige motivação, controle e transparência, e deve ser construída a partir de uma rede de atores e atrizes interessadas naquela decisão. Esse avanço busca garantir que o poder administrativo seja exercido de forma justa, eficiente e com respeito ao interesse público, sempre resguardando os direitos dos cidadãos.
O estudo do ato administrativo é, portanto, essencial para compreender o funcionamento e as limitações da administração pública em uma democracia moderna. A partir de um conjunto de regras e princípios, a administração pública não só implementa políticas e ações que impactam diretamente a sociedade, mas também fortalece a confiança pública na governança e assegura o respeito aos direitos dos administrados.
2. CONECTANDO-SE COM A REALIDADE JURÍDICA E ADMINISTRATIVA
Seabra Fagundes, numa visão clássica do Direito Administrativo, defende que o controle jurisdicional dos atos administrativos deve se limitar aos aspectos formais e legais, sem adentrar no mérito das decisões. Ou seja, o Poder Judiciário poderia avaliar o respeito aos requisitos legais e ao devido processo, mas não deveria interferir nas escolhas de conveniência e oportunidade da Administração Pública. Essa limitação preservaria a autonomia do poder administrativo, evitando que o Judiciário exercesse um papel concorrente ao Executivo, de modo a garantir o respeito às competências institucionais e prevenir um possível “governo de juízes”. Vejamos isso detalhadamente.
O controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário
Por Miguel Seabra Fagundes
(…) Pela necessidade de subtrair a Administração Pública a uma prevalência do Poder Judiciário, capaz de diminuí-la, ou até mesmo de anulá-la em sua atividade peculiar, se põem restrições à apreciação jurisdicional dos atos administrativos, no que respeita à extensão e consequências. Quanto à extensão, restringe-se o pronunciamento jurisdicional à apreciação do ato, no que se refere à conformidade com a lei. Relativamente às consequências, limita-se a lhe negar efeito em cada caso especial. Por isso, o pronunciamento do órgão jurisdicional nem analisa o ato do Poder Executivo, em todos os seus aspectos, nem o invalida totalmente.
Ao Poder Judiciário é vedado apreciar, no exercício do controle jurisdicional, o mérito dos atos administrativos. Cabe-lhe examiná-los, tão-somente, sob o prisma da legalidade. Este é o limite do controle, quanto à extensão.
O mérito está no sentido político do ato administrativo: É o sentido dele em função das normas da boa administração. Ou, noutras palavras: é o seu sentido como procedimento que atende ao interesse público, e, ao mesmo tempo, o ajusta aos interesses privados, que toda medida administrativa tem de levar em conta.
Por isso, exprime um juízo comparativo.
Compreende os aspectos, nem sempre de fácil percepção, atinentes ao acerto, à justiça, utilidade, eqüidade, razoabilidade, moralidade etc. de cada procedimento administrativo.
Esses aspectos, muitos autores os resumem no binômio: oportunidade e conveniência. Envolvem eles interesses e não direitos. Ao Judiciário não se submetem os interesses, que o ato administrativo contrarie, mas apenas os direitos individuais, acaso feridos por ele. O mérito é de atribuição exclusiva do Poder Executivo, e o Poder Judiciário, nele penetrando, “faria obra de administrador, violando, dessarte, o princípio de separação e independência dos poderes”. Os elementos que o constituem são dependentes de critério político e meios técnicos peculiares ao exercício do Poder Administrativo, estranhos ao âmbito, estritamente jurídico, da apreciação jurisdicional.
A análise da legalidade (legitimidade, dos autores italianos) tem um sentido puramente jurídico. Cinge-se a verificar se os atos da Administração obedeceram às prescrições legais, expressamente determinadas, quanto à competência e manifestação da vontade do agente, quanto ao motivo, ao objeto, à finalidade e à forma.
O controle jurisdicional se torna oportuno quando os efeitos do ato administrativo incidem sobre o administrado (excepcionalmente, quando esteja na iminência de incidir) e tem como resultado obstáculos, uma vez reconhecida a ilegalidade.
O Poder Judiciário, chamado a atuar no processo de realização do direito, para remover anormalidade nele surgida, circunscreve o âmbito da sua atuação ao caso sobre o qual tenha sido provocado. Extinguindo-se a situação anormal com o seu pronunciamento, cessa, por isso mesmo, a razão de ser da sua interferência.
Quando o ato administrativo impugnado atinge apenas a quem é parte na ação, a sentença que constate o conflito entre ele e a Constituição ou alguma lei pronuncia-lhe a nulidade.
Se se trata de ato administrativo geral, ainda que julgado ilegal mediante provocação de alguém, por ele prejudicado, subsiste nos seus demais efeitos, atingindo as situações jurídicas, a respeito das quais não se invocou o pronunciamento do Poder Judiciário.
Mesmo em se tratando de ato administrativo especial, isso se pode dar algumas vezes. O ato pode ser especial por sua natureza, mas referir-se a vários indivíduos conjuntamente, e, neste caso, a ação proposta por um só dos atingidos somente a ele aproveitará. Tomemos, por exemplo, o ato especial que exonera, simultaneamente, diversos funcionários envolvidos num só processo administrativo. Julgado ilegal o ato, mediante provocação de um dos funcionários exonerados, cessará de produzir efeito apenas relativamente a ele, subsistindo nos seus efeitos em relação aos demais, que não foram a juízo.Destarte, nos casos dos atos administrativos gerais, como nos de atos especiais alcançando várias pessoas, concilia-se o amparo ao administrado com a independência da Administração Pública. O Poder Judiciário declara o ato inaplicável aquele que foi a juízo, mas o deixa subsistente no que diz com os demais destinatários da atividade administrativa ilegítima.
Complementando a ideia de Seabra Fagundes, Hely Lopes Meirelles, em A Administração Pública e seus Controles, ressalta que o ato administrativo deve ser independente dos poderes Legislativo e Judiciário, em conformidade com o princípio da separação dos poderes. Ainda que a mesma linha teórica de Seabra esteja presente, no texto de Hely é possível perceber uma tensão no sentido de ampliação do controle, a partir da aparição de princípios como ordenadores da conformidade do ato.
A Administração Pública E Seus Controles
Por Hely Lopes Meirelles
(…) Controle judicial 1 é o exercido exclusivamente pelos órgãos do Poder Judiciário, na sua função judicante e contenciosa. Essa correção das atividades públicas pelo Poder judiciário visa à defesa dos administrados e à manutenção da Administração dentro das normas legais, pelo que é apenas um controle de legalidade. A propósito já escrevemos e ora repetimos que todo ato administrativo, para ser legítimo e válido, há de ser praticado em conformidade com o Direito (princípio da legalidade), com a moral da instituição (princípio da moralidade) e com o interesse público (princípio da finalidade). Faltando, contrariando ou desviando-se desses princípios, a Administração comete ilegalidade passível de invalidação por ela própria ou pelo Poder judiciário, desde que o requeira o interessado. Para obter a invalidação de ato administrativo ilegítimo, a parte interessada poderá valer-se do procedimento judicial comum (ação ordinária), ou de meios especiais, adequados à defesa de direitos individuais (mandado de segurança, ação cominatória, interditos possessórios, etc.) ou à preservação do patrimônio público lesado pela própria Administração (ação popular). A competência do Judiciário para a revisão de atos administrativos restringe-se ao controle da legalidade do ato impugnado. Mas por legalidade ou legitimidade se entende, não só a conformação do ato com a lei, como também com a moral administrativa e com o interesse coletivo, indissociável de toda atividade pública. Tanto é ato ilegal ou ilegítimo o que desatende a lei, como o que violenta a moral da instituição, ou se desvia do interesse público, para servir a interesses privados de pessoas, grupos, ou partidos favoritos da Administração. Ao Poder judiciário é permitido perquirir todos os aspectos de legitimidade, para descobrir e pronunciar a nulidade do ato administrativo onde ela se encontre e seja qual for o artifício que a encubra. O que não se permite ao judiciário é pronunciar-se sobre o mérito administrativo, ou seja, sobre a conveniência, oportunidade e justiça do ato, porque, se assim agisse, estaria emitindo pronunciamento de administração e não de jurisdição. O mérito administrativo, relacionando-se com questões políticas e elementos técnicos, refoge do âmbito do Poder judiciário, cuja missão é a de aferir a conformação do ato com a lei escrita, ou, na sua falta, com os princípios gerais do Direito. (…)
O conceito central do ato administrativo como decorrente das capacidades imperativas do Poder Executivo gerou efeitos complexos. Se por um lado, tal pressuposto protegeu a independência política da Administração frente aos demais poderes, o reduzido espaço de seu controle acabaria por reforçar um aspecto autoritário da ação executiva. Tal efeito – de um ato administrativo isolado, protegido pelas prerrogativas da Administração – acabaria por distanciar o seu ideário dos seus princípios formadores, como instrumento de contenção legal do poder político. Tal aspecto seria objeto de profundas críticas da doutrina nacional, especialmente depois da promulgação da Constituição de 1988. Em texto seminal, Floriano de Azevedo Marques Neto aborda essa problemática, chamando a atenção para a necessidade de um reenquadramento do ato administrativo, a partir de um arranjo que realçasse os direitos e a participação dos administrados.
Contra o ato administrativo autista
Por Floriano de Azevedo Marques Neto
(…) Este ato administrativo, tomado pelo ângulo interno ao sistema jurídico administrativo, tratado pelo vetor da estrutura da administração pública, denominaremos aqui de ato administrativo autista. E assim o faremos para ressaltar sua principal característica: um brutal déficit de comunicação com o meio ambiente cultural, social, econômico; sua absoluta indiferença para com os administrados e com a sociedade que, em última instância, são destinatários e razão de ser da prática desses atos. Esta exacerbação da autonomia do ato administrativo, que pressupõe que todos os elementos para sua existência, validade e eficácia são encontrados internamente ao sistema jurídico administrativo, gera uma absoluta indiferença em relação ao meio. Aquilo que num primeiro momento procura imunizar o ato das interferências da política, da economia, da cultura e, para tanto, coloca o administrado na condição de mero espectador e destinatário do ato.
Nesta acepção, o ato administrativo autista poderia ser definido como a manifestação unilateral da Administração pública, por intermédio de agente competente, no exercício de poder extroverso e praticado em cumprimento estrito de um comando legal, sujeitando-o ao controle judicial quanto aos aspectos de legalidade. A delimitação do que estamos designando de ato administrativo autista, acrescentam-se os chamados atributos do ato, quais sejam: a presunção de legitimidade e veracidade, a imperatividade, a exigibilidade e a autoexecutoriedade. Todas estas características concorrem para moldar uma visão de ato administrativo que desconsidera em absoluto a condição do administrado.
Como vimos anteriormente, nesta concepção tradicional, os interesses legítimos dos administrados estariam supostamente preservados nas etapas precedentes e subsequentes à edição e efetividade do ato administrativo. Antes, na formação do comando legal que autoriza a prática do ato e lhe daria os contornos; depois, permitindo o recurso à jurisdição para invalidação do ato que colidisse com estes parâmetros da autorização legal. Admitida, dentro desta concepção, a preservação dos direitos dos indivíduos nas etapas precedente (lei) e consequente (controle judicial), a edição do ato administrativo estaria situada dentro da estrutura da administração, de modo impenetrável e impermeável aos interesses do administrado, o que bem se caracteriza com a fórmula “manifestação unilateral da administração pública”.
O ato administrativo autista, tal como estamos a ver, é dependente de uma visão positivista do direito administrativo, pela qual o sistema jurídico seria autônomo a partir da premissa da legalidade e passível de checagem e validação apenas no ambiente da revisão judicial (pautada também ela pelos lindes do direito positivo). Esta concepção, repito, é legatária da fórmula clássica da tripartição de poderes, a qual confere ao sistema jurídico administrativo uma robusta autonomia, entendida aqui como a autossuficiência em relação às condicionantes externas ao sistema jurídico. Os parâmetros para a edição de um ato administrativo válido são aqueles postos ex ante pelo próprio sistema jurídico (autorização legal, forma prescrita, competência do agente etc.), sendo irrelevantes os fatores externos ao sistema jurídico administrativo (interesses dos administrados, mínimo sacrifício do direito individual, proporcionalidade, máxima eficácia da função pública etc.).
Num texto precioso, ainda inédito, Santiago Montt, expõe duas vertentes do Direito Administrativo: a que denomina de luz vermelha, baseada na autonomia ditada pela lei e no controle de legalidade; a outra, chamada de direito administrativo, baseada na ideia de responsividade, na capacidade de dar respostas às demandas do sistema social, e que é pautada pela eficiência, transparência, probidade, publicidade e participação. No entender de Santiago Montt, o direito administrativo autonomista se pauta numa visão retrospectiva (backward-looking), pois é condicionado pelos parâmetros Êxodos ex ante pela lei, enquanto a visão responsiva se norteia por uma visão prospectiva (forward-looking), preocupada com a eficiência (otimização) e efetividade (concretude) dos resultados do provimento administrativo.
Pois bem, a concepção tradicional do ato administrativo (autista, agregaremos) é a manifestação talvez mais acabada da vertente luz vermelha do direito administrativo. Ela se afirma por uma dependência estrita ao conceito de legalidade (fonte e parâmetro para edição do ato) que, apesar de sua origem inegavelmente garantista, protetiva do indivíduo, confere uma ampla margem de autonomia a Administração intervir na esfera de direitos dos indivíduos, sem franquear a estes indivíduos a possibilidade de intervir e interferir na formação do ato, e sem obrigar a Administração a sopesar, de forma transparente, as diversas alternativas de ação, para selecionar aquela que reúna as melhores condições de efetividade com o menor sacrifício de direitos.
(…)Como resultado destas formulações tem-se que o ato administrativo autista se torna-se uma manifestação do poder autoritário (v.g., centrado na figura da autoridade). Ao se construir predominantemente apoiada na ideia de autonomia (rectius, indiferença) do sistema jurídico administrativo, esta concepção passa a depender exclusivamente da autoridade do agente público. Ao portador da autorização para manejar o poder extroverso nas situações concretas (detentor da competência) é confiada exclusivamente a prerrogativa de (i) interpretar uma ordem jurídica composta por comandos legais dúcteis e abertos, retirando dela a autorização para agir; (ii) interpretar os fatos, selecionando-os e avaliando-os, retirando deles o suporte tático justificador do ato; (iii) identificar qual o interesse público a ser consagrado, (iv) eleger a espécie , a forma, e a intensidade do ato a adotar; e (v) cuidar de dar eficácia ao ato praticado. Tudo isso, no ato administrativo autista, é feito no âmbito interno ao sistema jurídico administrativo, quase sem comunicação com os interesses dos administrados (que são interpretados genérica e difusamente na avaliação do interesse público) e sem preocupação com os impactos que a prática do ato terá nos sistemas econômico, social, cultural etc. Num quadro em que estes sistemas adquirem crescente relevância e em que as provocações por provimentos de parte do sistema jurídico administrativo crescem e se tornam mais e mais complexos, veremos se avolumarem questões desafiadoras, predicando um momento de transição de paradigmas. (…)
A visão de Floriano de Azevedo Marques Neto expressa o estado da arte daquilo que acabaria por ser a tônica da compreensão dos doutrinadores de Direito Administrativo na crítica que se dirigia ao campo após a Constituição Federal. Esse isolamento autoritário do ato administrativo precisaria ser corrigido a partir de uma nova compreensão que submeteria a ação da Administração a um novo arranjo de controle formais – processo administrativo – e materiais – submissão do mérito administrativo aos direitos fundamentais e garantias constitucionais.
O direito Administrativo em Evolução
Por Odete Medauar
Na concepção atual, o processo administrativo configura não apenas meio de atendimento de requisitos de validade do ato administrativo; além disso, propicia o conhecimento do que ocorre antes que o ato faça repercutir, sobre os indivíduos, os seus efeitos, permitindo verificar, por conseguinte, como se realiza a tomada de decisão; assim contribui para conferir-lhe maior grau de objetividade. Em contraponto à visão estática da atividade administrativa, correspondente à noção atomista do ato, se tem a visão dinâmica, pois se focaliza o ato no seu “formar-se” e nos seus veículos instrumentais.
Nesse entendimento, o ato administrativo se torna produto do exercício da função, deixando-se de considerá-lo como expressão pré-constituída de uma autoridade privilegiada. O caráter processual da formação do ato administrativo contrapõe-se, desse modo, a operações internas e secretas, à concepção dos arcana imperii, dominante na época do poder absoluto, lembrada por Bobbio ao discorrer sobre a publicidade e o poder invisível, considerando essencial à democracia um grau elevado de visibilidade do poder.
Na administração inserida em sociedade e Estado caracterizados pela complexidade sócio-político-econômica e pela multiplicidade de interesses, o processo administrativo também é meio para que os diversos interesses aflorem antes da tomada de decisões; permite o confronto objetivo e mesmo a coexistência de interesses. Com isso propicia, ainda, o controle dos indivíduos e grupos sobre a atividade administrativa.
Além do mais, o “esquema processual responde à exigência pluralista que domina a sociedade atual, pois chama a cooperar, no exercício do poder, e portanto, envolvidos no exercício deste; deixa de ocorrer o rígido confronto entre autoridade e liberdade, em prol de um “compartilhar” do poder se liga ao princípio democrático; realiza-se uma cooperação entre sujeitos públicos e sujeitos privados, entre entidades centrais e descentralizadas, e órgãos hierarquizados, o que propicia atenuação do caráter de rigidez e de imposição unilateral nas condutas administrativas.
O conjunto dos aspectos mencionados induz à ideia de uma democracia pelo procedimento ao lado da democracia representativa e da democracia resultante de mecanismos descentralizado. E permite vislumbrar o processo como “ferramenta jurídica idônea na disciplina das relações entre governantes e governados”.e demonstra – o que é imperdoável no intérprete – falta de visão sistemática da Constituição.
No trecho acima, Odete Medauar mostra o potencial que a emergência da processualidade no direito administrativo geraria para o tema dos atos administrativos. Buscando uma maior integração entre Administração e Administrados, a ideia de processualizar a confecção de atos administrativos seria um instrumento para quebrar o seu isolamento e o viés autoritário da sua formação. Abaixo, Gustavo Binenbojn segue em linha parecida, demonstrando como além dos elementos formais – mudanças no processo de preparação dos atos, via processo – os atos administrativos precisariam se submeter a um controle de conteúdo que os adaptasse às novas exigências de um regime democrático, consagrado pelos direitos fundamentais.
Os dois Giros do Direito Administrativo
Por Gustavo Binenbojm
A guinada democrático-constitucional do direito administrativo é fenômeno hoje bastante difundido, mas que ocorreu em momentos históricos distintos nas diferentes partes do mundo ocidental. Enquanto nos Estados Unidos da América a sua percepção é a de um processo de longo curso, gradualmente desenvolvido desde a fundação do país e intensificado a partir do New Deal, na Europa continental ele se inicia no segundo pós-guerra e percorre toda a segunda metade do século XX, coincidindo com a redemocratização e a reconstitucionalização das nações submetidas a regimes autocráticos.
No Brasil, tal fenômeno tem como marco político-jurídico seminal a promulgação da Constituição democrática de 1988, força motriz de importantes transformações no direito administrativo pátrio. O Estado democrático de direito então inaugurado passa a afirmar a centralidade do sistema de direitos fundamentais e da democracia, que se apresentam, simultaneamente, como seus elementos estruturantes e fundamentos de legitimidade. A Constitucionalização do direito administrativo designa, assim, não apenas a previsão dos grandes princípios e de algumas regras da disciplina no texto Constitucional, mas sobretudo a impregnação da dogmática administrativista pelos vetores axiológicos da Lei Maior, propiciando uma releitura de seus institutos, categorias operativas e formas organizacionais.
A influência do constitucionalismo democrático se dá por meio de mutações que refletem uma nova compreensão sobre a legitimidade da organização e do funcionamento da Administração Pública. Modo geral, esse giro democrático-constitucional propulsiona mudanças direcionadas a: (i) incrementar o grau de responsividade dos administradores públicos às aspirações e demandas da sociedade, mediante adoção de procedimentos mais transparentes e participativos.; (ii) respeitar, proteger e promover os direitos fundamentais dos administrados, por meio de mecanismos que assegurem o devido processo legal e de políticas públicas a eles vinculadas; (iii) submeter a atuação dos administradores públicos a controles efetivos, fundados tanto em parâmetros jurídicos como em termos de resultados práticos.
Esses movimentos intelectuais mudaram a composição e os elementos formadores do ato administrativo. Da sua situação de proteção tradicional, os atos da administração passaram a ser fortemente analisados, por meio de uma série de novos sistemas e órgãos de controle. Ao contrário da visão tradicional, pela qual o mérito administrativo deveria ser desenhado a partir da autonomia do Poder Executivo, as novas formas de controle têm buscado disputar elementos que tradicionalmente eram vistos como sujeitos apenas à discricionariedade administrativa.
No caso trazido abaixo, a decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a possibilidade de impedir, liminarmente, a posse de um Ministro devidamente nomeado pela então Presidente da República. Como se verá no texto abaixo, o controle do ato administrativo em questão não se daria por um vício formal objetivo, mas antes por uma análise dos elementos materiais da formação da finalidade da referida medida. Este caso ilustra questões centrais sobre os atos administrativos e o controle jurisdicional, além de destacar a interação entre o Executivo e o Judiciário em momentos críticos da política nacional. Mais do que isso, revela como elementos como a moralidade, os fundamentos principiológicos e a adequação do ato aos proclamados direitos fundamentais passam a ser componentes na diretriz de apreciação da norma em questão.
MS 34071 MC / DF
Supremo Tribunal Federal
Ministro Relator: Gilmar Mendes
(…) A oposição tem claro interesse em levar ao judiciário atos administrativos de efeitos concretos lesivos a direitos difusos.
E nosso sistema consagra a tutela de violações a direitos difusos como um valor a ser buscado, na perspectiva do acesso à jurisdição.
No presente caso, estão em apreciação vários mandados de segurança em caráter coletivo impetrados por partidos políticos com representação no Congresso Nacional, não integrantes da base aliada, contra ato da Presidente da República.
Logo, trata-se de uma via de defesa da ordem institucional que pode ser validamente desenvolvida e aceita.
Feitas essas considerações, tenho por cabíveis as ações de mandado de segurança.
Passo a apreciar os pedidos liminares propriamente ditos.
A partir do caso Natan Donadon, o STF consolidou jurisprudência no sentido de que a renúncia a cargos públicos que conferem prerrogativa de foro, com o velado objetivo de escapar ao julgamento em iminência, configura desvio de finalidade, inapto a afastar a competência para o julgamento da causa – AP 396, Rel. Min. Cármen Lúcia, Tribunal Pleno, julgada em 28.10.2010.
A situação aqui envolve o contrário. A alegação é de que pessoa foi nomeada para o cargo de Ministro de Estado para deslocar o foro para o STF e salvaguardar-se contra eventual ação penal sem a autorização parlamentar prevista no art. 51, I, da CF.
(…)
Em caso como o do exemplo citado, é preciso verificar se a finalidade do ato administrativo de nomeação foi deturpada, a fim de atingir objetivo diverso do simulado. Odete Medauar é clara ao dizer que ‘o fim de interesse público vincula a atuação do agente, impedindo a intenção pessoal’ (MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno, 17. ed. São Paulo: RT, 2013, p. 157. Se os motivos forem apenas aparentes, porque o fim desejado é outro, ocorrerá desvio de finalidade. É o caso, por exemplo, da remoção de um policial sob o argumento de que dele se necessita em outro município, quando, na verdade, o objetivo é afastá-lo da investigação de determinado caso.
Hely Lopes Meirelles, com a clareza que marcou suas obras, ensina que ‘o desvio de finalidade ou de poder se verifica quando a autoridade, embora atuando nos limites de sua competência, pratica o ato por motivos ou com fins diversos dos objetivados pela lei ou exigidos pelo interesse público’ (MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro, 14. ed. São Paulo: RT, 1989, p. 92.. Celso Antonio Bandeira de Mello enfatiza que, ‘a propósito do uso de um ato para alcançar finalidade diversa da que lhe é própria, costuma se falar em ‘desvio de poder’ ou ‘desvio de finalidade’” (BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio, Elementos de Direito Administrativo. São Paulo: RT, 1987, p. 47).
(…)
A ocorrência desse tipo de desvio de conduta sujeitará a autoridade administrativa, seja ela membro do Poder Legislativo, prefeito, governador, presidente da República ou outra do segundo escalão do Executivo, a ação popular e, ainda,ação ordinária de nulidade do ato, junto com a União, que poderá ser proposta no foro federal do domicílio do autor.
Na verdade, as práticas administrativas passam, no Brasil, por um flagrante processo de mudança. Basta ver a obrigatoriedade atual da transparência dos atos administrativos, inimaginável há duas ou três décadas. Assim, os administradores, seja qual for o nível ou o Poder de Estado a que pertençam, devem se acautelar na condução de seus atos, pois, em boa hora, ficou para trás o tempo do “manda quem pode, obedece quem tem juízo”. (FREITAS, Vladimir Passos de. Nomeação para dar foro privilegiado a réu é ato administrativo nulo. Disponível em:
http://www.conjur.com.br/2016-mar-13/segunda-leituranomeacao-dar-foro-privilegiado-reu-ato-administrativonulo#_ednref5. Acesso em: 18.3.2016.)
Nenhum Chefe do Poder Executivo, em qualquer de suas esferas, é dono da condução dos destinos do país; na verdade, ostenta papel de simples mandatário da vontade popular, a qual deve ser seguida em consonância com os princípios constitucionais explícitos e implícitos, entre eles a probidade e a moralidade no trato do interesse público “lato sensu”.O princípio da moralidade pauta qualquer ato administrativo, inclusive a nomeação de Ministro de Estado, de maneira a impedir que sejam conspurcados os predicados da honestidade, da probidade e da boa-fé no trato da “res publica”. (…)
Em continuidade, passaremos a analisar outra decisão relevante, desta vez do Tribunal de Contas da União (TCU) sobre o resultado de um processo licitatório para a compra de armamentos. Assim como no mencionado julgado acima, a decisão do TCU sobre essa licitação não aborda apenas aspectos legais, mas também reflete sobre a transparência e a eficiência dos processos licitatórios, fundamentais para a integridade da Administração Pública. No limite, o entendimento procura definir qual o limite da discricionariedade do Poder Executivo na escolha dos habilitados em processo licitatório dessa natureza.
TCU – TC 021.681/2024-4
Ministro Relator: Antônio Anastasia
(…) De início, assinalo que a consulta apresentada pelo Ministro de Estado da Defesa José Múcio Monteiro pode ser conhecida por esta Corte, pois cumpre os requisitos de admissibilidade previstos no art. 1º, XVII e § 2º, da Lei 8.443/1992 e no art. 264, caput, VI, §§ 1º e 2º, do Regimento Interno do TCU. O questionamento foi redigido nestes exatos termos (grifos acrescidos):
“(…) indaga-se a essa Corte de Contas se, apenas com esteio nos princípios constitucionais da defesa da paz e da solução pacífica de conflitos (incisos VI e VII do art. 4º da Constituição Federal), e excetuadas as hipóteses, devidamente formalizadas, (i) de decretação de embargo comercial por organismo multilateral de que o Brasil seja parte, (ii) de ruptura de relações diplomáticas ou comerciais com o governo brasileiro ou (iii) de deliberação de corte internacional de justiça a cuja observância o Brasil se obrigou e que vede, expressamente, a aquisição de bens e produtos, de índole bélica ou não, de empresas, entidades ou organizações de determinado país, é possível, não obstante a expressa vedação contida no § 6º do art. 52 da Lei 14.133/2021, restringir ou impedir a participação em licitação de empresa, entidade ou organização, pública ou privada, com vínculos com país em situação de conflito armado alhures, bem como a celebração ou a manutenção de contrato com tais entes, ainda que tal restrição ou vedação acarrete consequências de tamanha monta que comprometam, severamente, o cumprimento das missões institucionais das Forças Armadas brasileiras e coloquem, em grave risco, a defesa nacional?”
(…)
4. Noto que o cerne da controvérsia é esclarecer se, para fornecedores com vínculos com país em situação de conflito armado, existe a possibilidade de restringir a participação em licitação, ou impedir a celebração ou continuidade de contratos já firmados.
5. A esse respeito, há de se observar, a princípio, que a consulta trata somente da importação de material bélico, e não da exportação, uma vez que discute, em especial, a participação em licitação e a formalização de ajuste dela decorrente. É oportuno anotar que a exportação de produtos bélico requer conduta significativamente mais cautelosa que para sua importação. Isso porque existe o risco de que os produtos ou sistemas sejam utilizados para a prática de crimes contra a humanidade ou até mesmo sejam usados em eventuais conflitos contra o nosso País.
6. A Lei 12.598/2012, que estabelece normas especiais para as compras, as contratações e o desenvolvimento de produtos e de sistemas de defesa, permite a diferenciação entre fornecedores nacionais e estrangeiros somente em situações específicas e que não guardam relação com a consulta em discussão. É o caso do art. 3º, que permite licitações destinadas exclusivamente a Empresas Estratégicas de Defesa (EEDs), as quais, entre outras características, têm sede no Brasil. Há também o art. 4º, que trata de acordos de compensação tecnológica, industrial e comercial, que prevê a possibilidade de diferenciação entre participantes, desde que se busque a obtenção de retornos tecnológicos.
7. Outra peculiaridade relevante da lei está em seu art. 14, que prevê que as compras e contratações devem observar as diretrizes de política externa e os compromissos internacionais ratificados pelo Brasil na área de defesa.
(…)
16. Enfim, de fato, como bem concluiu a AudGovernança, a legislação vigente relativa ao tema em discussão, em especial a Lei 12.598/2012 e o Decreto 9.607/2018, não apresenta restrições com relação a fornecedor ligado a um país que esteja em situação de conflito bélico, quanto à participação em licitação ou à realização de contrato para a importação de produtos de defesa. Tampouco existem tratados internacionais internalizados pelo Brasil ou embargos do Conselho de Segurança das Nações Unidas que criem algum empecilho a esse respeito.
17. No que concerne à resposta à consulta, reitero meu entendimento de que ela deve se ater aos termos da indagação submetida a esta Corte, tendo como base a legislação em vigor pertinente ao tema. A questão do consulente é sobre a possibilidade de criação de restrições quanto à participação em licitação para a aquisições de produtos de empresas, entidades ou organizações vinculadas a país em situação de conflito ou alguma limitação à contratação. A resposta, portanto, de acordo com a legislação atual, principalmente a Lei 12.598/2012 e o Decreto 9.607/2018, deve ser a de que não existe restrição dessa natureza.
18. Diante do exposto, acolho a essência da proposta da unidade técnica. Quanto à redação da
resposta, creio ser adequado proceder adaptações nas propostas apresentadas pelo auditor e pelo diretor, para que melhor reflita meu entendimento exposto neste voto.
Assim sendo, voto para que o Tribunal adote o acórdão que ora submeto ao Plenário.TCU, Sala das Sessões, em 18 de setembro de 2024
A ampliação desse ambiente de controle se, por um lado, parece ter criado um cenário mais democrático e participativo para o processo de feitura das decisões administrativas, por outro, tem gerado dificuldades para a sua operação. Isso porque a possibilidade da rediscussão ampliada do mérito administrativo pode, em algumas situações, gerar ambientes de instabilidade e de baixa segurança jurídica. Nesse sentido, a legislação vem tentando dar maior enquadramento aos fundamentos decisórios, em matéria de controle. A Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB) foi alterada em 2018, para prever um arranjo mais estável dos limites dessa revisão.
Decreto-Lei nº 4.657/1942
Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro
Art. 20. Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão. (Incluído pela Lei nº 13.655, de 2018) (Regulamento)
Parágrafo único. A motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possíveis alternativas. (Incluído pela Lei nº 13.655, de 2018)
Art. 21. A decisão que, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, decretar a invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa deverá indicar de modo expresso suas consequências jurídicas e administrativas. (Incluído pela Lei nº 13.655, de 2018) (Regulamento)
Parágrafo único. A decisão a que se refere o caput deste artigo deverá, quando for o caso, indicar as condições para que a regularização ocorra de modo proporcional e equânime e sem prejuízo aos interesses gerais, não se podendo impor aos sujeitos atingidos ônus ou perdas que, em função das peculiaridades do caso, sejam anormais ou excessivos. (Incluído pela Lei nº 13.655, de 2018)
Art. 22. Na interpretação de normas sobre gestão pública, serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados. (Regulamento)
§ 1º Em decisão sobre regularidade de conduta ou validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, serão consideradas as circunstâncias práticas que houverem imposto, limitado ou condicionado a ação do agente. (Incluído pela Lei nº 13.655, de 2018)
§ 2º Na aplicação de sanções, serão consideradas a natureza e a gravidade da infração cometida, os danos que dela provierem para a administração pública, as circunstâncias agravantes ou atenuantes e os antecedentes do agente. (Incluído pela Lei nº 13.655, de 2018)
§ 3º As sanções aplicadas ao agente serão levadas em conta na dosimetria das demais sanções de mesma natureza e relativas ao mesmo fato. (Incluído pela Lei nº 13.655, de 2018)
Art. 23. A decisão administrativa, controladora ou judicial que estabelecer interpretação ou orientação nova sobre norma de conteúdo indeterminado, impondo novo dever ou novo condicionamento de direito, deverá prever regime de transição quando indispensável para que o novo dever ou condicionamento de direito seja cumprido de modo proporcional, equânime e eficiente e sem prejuízo aos interesses gerais. (Regulamento)
Parágrafo único. (VETADO). (Incluído pela Lei nº 13.655, de 2018)
Art. 24. A revisão, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, quanto à validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa cuja produção já se houver completado levará em conta as orientações gerais da época, sendo vedado que, com base em mudança posterior de orientação geral, se declarem inválidas situações plenamente constituídas. (Incluído pela Lei nº 13.655, de 2018) (Regulamento)
Parágrafo único. Consideram-se orientações gerais as interpretações e especificações contidas em atos públicos de caráter geral ou em jurisprudência judicial ou administrativa majoritária, e ainda as adotadas por prática administrativa reiterada e de amplo conhecimento público. (Incluído pela Lei nº 13.655, de 2018)
Os limites do controle sobre a discricionariedade serão, seguramente, um dos elementos importantes na continuidade das pesquisas e da reflexão sobre os próximos caminhos do Direito Administrativo brasileiro.
3. DEBATENDO
Essa é uma aula pródiga de debates interessantes. A alguns deles:
- Quais são os princípios fundamentais que regem a legalidade dos atos administrativos, e como esses princípios orientam a atuação do Judiciário no controle jurisdicional desses atos?
- Como se dá a distinção entre a análise da legalidade e a avaliação dos méritos nos atos administrativos, e por que essa diferenciação é crucial para a manutenção da separação dos poderes?
- De que maneira o princípio da separação dos poderes impacta o alcance e a eficácia do controle judicial sobre atos administrativos, especialmente no que diz respeito à conveniência e oportunidade das decisões administrativas?
- Em quais situações específicas o Judiciário pode intervir em atos administrativos que envolvam aspectos de mérito, e quais critérios devem ser considerados para essa intervenção?
- Quais são os possíveis riscos e implicações de uma invasão do Judiciário na análise dos méritos administrativos, tanto para a autonomia da Administração Pública quanto para a proteção dos direitos dos cidadãos?
- De que forma os princípios constitucionais e os direitos fundamentais podem influenciar a avaliação dos atos administrativos, mesmo quando o controle judicial se limita à análise da legalidade?
- Como as decisões proferidas pelos tribunais superiores, como o Supremo Tribunal Federal e o Tribunal de Contas da União, podem contribuir para a compreensão dos limites do controle sobre o mérito administrativo na prática?
- Quais são as consequências práticas da restrição do controle sobre o mérito para a eficácia da Administração Pública, e como isso afeta a relação entre o Estado e os cidadãos?
- Em que medida o tema da processualização afeta a qualidade de produção dos atos administrativos?
- Como a promoção da transparência e o incentivo à participação cidadã podem fortalecer a eficácia do controle dos atos administrativos, sem que isso signifique uma invasão do mérito?
4. APROFUNDANDO
Para saber mais, busque, além dos textos citados ao longo da aula, os seguintes livros e artigos:
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 32. ed. São Paulo: Atlas, 2020.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 47. ed. São Paulo: Malheiros, 2020.
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2020.
VIEIRA DE CARVALHO NETO, Tarcísio. Direito Administrativo: Teoria e Prática. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2021.
VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Administrativo. 3.ed. São Paulo: Método, 2021.
FERREIRA, Luiz Felipe. O Controle dos Atos Administrativos: A Atuação do Judiciário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018.
MELO, Marcos Bernardes de. Atos Administrativos: Teoria Geral e Prática. São Paulo: Saraiva, 2020.
SUNDFELD, Carlos Ari. Direito Administrativo: Teoria e Prática. São Paulo: Saraiva, 2020.
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 29. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2021.
ALMEIDA, Guilherme de. Atos Administrativos: Teoria Geral. São Paulo: Método, 2019.
DURAN, Mário. Teoria do Ato Administrativo. São Paulo: Atlas, 2019.
COSTA, Célio ASS Direito Administrativo: Atos e Contratos. São Paulo: Atlas, 2017.
GONÇALVES, Kildare. O Controle Jurisdicional dos Atos Administrativos. São Paulo: Editora RT, 2016.
GASPARINI, Diógenes. Direito Administrativo. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2020.