1. CONHECENDO O BÁSICO
Como você já sabe, a Administração Pública elabora normas que impactam os mais diversos aspectos das nossas vidas. Pense, por exemplo, nos desastres ambientais ocorridos com os rompimentos das barragens de Mariana (2015) e Brumadinho (2019), municípios de Minas Gerais. Esses eventos exigiram respostas regulatórias rápidas e compatíveis com os prejuízos causados à sociedade e ao meio ambiente. No âmbito da Agência Nacional de Mineração (ANM), por exemplo, tais desastres motivaram a elaboração de novas normas e a atualização dos regulamentos existentes relativos à segurança das barragens de mineração e à fiscalização das atividades de mineração. Outro exemplo é o da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), responsável pelo controle sanitário da produção e do consumo de produtos e serviços em diversos setores, além de exercer controle em portos, aeroportos, fronteiras e recintos alfandegados. A produção e comercialização de medicamentos, suplementos alimentares e cosméticos, assim como o funcionamento de alguns estabelecimentos, como bares, restaurantes e farmácias, estão sujeitos à sua regulação.
A atividade normativa da Administração Pública tem apresentado franca expansão nos últimos anos, impulsionada pela reconfiguração das demandas sociais em um mundo cada vez mais globalizado e tecnológico. Como a atividade regulatória normalmente impõe custos à atividade produtiva, esse cenário de produção normativa crescente tem ampliado a preocupação, entre os administrativistas, sobre comoas normas regulatórias são produzidas, quais são os seus resultadospráticos e qual seria a melhor forma de controlar o acúmulo normativo.
Regular com qualidade não é nada trivial e a percepção generalizada na atualidade é de que o peso da regulação pública é cada vez maior e inibe o empreendedorismo, a inovação, a livre competição e os avanços de produtividade. No caso brasileiro, dados divulgados em 2022 pela Secretaria Especial de Produtividade, Emprego e Competitividade, do Ministério da Economia, apontam que o custo da ineficiência regulatória, anualmente, está na ordem de R$ 160 bilhões a R$ 200 bilhões.[1] Esses valores refletem o baixo desempenho do Brasil em indicadores internacionais que avaliam a qualidade do ambiente de negócios em diversos países, inclusive sob a perspectiva regulatória, como o Doing Business, do Banco Mundial, no qual o Brasil ficou na posição 124/190, atrás do México, da Colômbia e de todos os países membros do BRICS[2].
O processo de ordenação das atividades econômicas deve buscar a eficiência administrativa, eliminar interferências desnecessárias no setor regulado e rever exigências que não deveriam existir ou que já tenham perdido utilidade. No limite, o excesso de burocracia pode favorecer a corrupção, limitar a competição entre agentes econômicos e afetar a eficiência produtiva.
Diante desse cenário, os reguladores brasileiros têm buscado o fortalecimento dos seus mecanismos internos de gestão do estoque regulatório. O objetivo é a avaliação periódica do conjunto de normas vigentes em seu arcabouço – isto é, seu estoque regulatório –, para, entre outras coisas, mensurar os custos e benefícios da regulação, avaliar os resultados alcançados pelas medidas regulatórias adotadas, além de comparar as alternativas disponíveis para regular uma determinada atividade. Nesse sentido, a gestão ideal do estoque regulatório está diretamente relacionada à utilização eficiente dos instrumentos de avaliação de medidas regulatórias.
Ao lado do reforço no uso de instrumentos mais tradicionais, a exemplo da Consulta Pública, Audiência Pública, Tomada de Subsídios e Reunião Participativa, outros instrumentos têm sido introduzidos no ordenamento jurídico para aperfeiçoar a atividade regulatória na Administração Pública brasileira, como a Agenda Regulatória, a Análise de Impacto Regulatório (AIR) e a Avaliação de Resultados Regulatórios (ARR).
Nesta aula, vamos conversar um pouco sobre como um destes instrumentos, a AIR, tem sido utilizado na prática pelos órgãos reguladores federais, a partir de três experiências distintas envolvendo entidades da Administração Pública Federal Indireta. Na primeira, apresentaremos a discussão e os resultados de um estudo empírico e quantitativo sobre a experiênciada ANVISA com o processo de dispensa de AIR.[3] Em seguida, será a experiência do INMETRO, que se viu obrigado a rever seu estoque regulatório devido à imposição trazida pelo Decreto Federal 10.139, de 2019 (decreto do “revogaço”), que determinou a revisão e a consolidação de atos normativos inferiores a decreto de órgãos e entidades da administração pública federal direta, autárquica e fundacional. Por fim, estudaremos a experiência da ANM no processo de elaboração e revisão da Resolução 122, de 2022, norma de caráter sancionatório que vem sofrendo forte resistência do setor regulado para se tornar efetiva.[4]
2. CONECTANDO-SE COM A REALIDADE JURÍDICA E ADMINISTRATIVA
A implementação do Programa de Fortalecimento da Capacidade Institucional para Gestão em Regulação (PRO-REG), criado pelo Decreto Federal 6.062, de 2007, deu início à agenda de reformas voltadas à melhoria incremental da atividade regulatória em âmbito federal. À época, o governo federal encomendou estudos e organizou seminários para servidores de agências reguladoras federais sobre a utilização de instrumentos de melhoria regulatória, como a AIR. A experiência da ANVISA foi particularmente relevante para as iniciativas desenvolvidas no âmbito do PRO-REG: em 2006, antes mesmo da criação do programa federal, a agência liderou um evento internacional voltado ao compartilhamento de experiências sobre uso da AIR como instrumento de melhoria da qualidade regulatória[5]. Como resultado da união de esforços com o governo federal, a ANVISA publicou diversas normas voltadas ao aprimoramento do seu processo de elaboração de regulamentos – dentre elas, a Portaria 422, de 2008 –, tornando-se pioneira na implementação da AIR no Brasil.
Em 2018, o próprio governo federal publicou o Guia de Diretrizes Gerais e Orientativo para elaboração de Análise de Impacto Regulatório – AIR,que permanece como o documento atual de referência para a elaboração de AIRs.[6] Somente em 2019, uma década após as primeiras iniciativas de aperfeiçoamento da governança regulatória no Brasil, estes instrumentos de regulação foram consolidados no plano legal, primeiro com a edição da Lei Federal 13.848, de 2019, (Lei Geral de Agências Reguladoras), que tornou obrigatório o uso de agenda regulatória, consulta pública e AIR pelas agências reguladoras federais; e, em seguida, com a Lei Federal 13.874, de 2019, (Lei de Liberdade Econômica), que estabeleceu o dever de certas propostas de atos normativos serem antecedidas de AIR para todos os órgãos ou entidades da Administração Pública Federal que publicassem atos normativos de interesse geral com impacto econômico.[7] Vejam como essas obrigações estão dispostas na legislação:
Lei Geral das Agências Reguladoras (Lei n.º 13.848/2019)
Art. 6º A adoção e as propostas de alteração de atos normativos de interesse geral dos agentes econômicos, consumidores ou usuários dos serviços prestados serão, nos termos de regulamento, precedidas da realização de Análise de Impacto Regulatório (AIR), que conterá informações e dados sobre os possíveis efeitos do ato normativo.
§ 1º Regulamento disporá sobre o conteúdo e a metodologia da AIR, sobre os quesitos mínimos a serem objeto de exame, bem como sobre os casos em que será obrigatória sua realização e aqueles em que poderá ser dispensada.
§ 2º O regimento interno de cada agência disporá sobre a operacionalização da AIR em seu âmbito.
§ 3º O conselho diretor ou a diretoria colegiada manifestar-se-á, em relação ao relatório de AIR, sobre a adequação da proposta de ato normativo aos objetivos pretendidos, indicando se os impactos estimados recomendam sua adoção, e, quando for o caso, quais os complementos necessários.
§ 4º A manifestação de que trata o § 3º integrará, juntamente com o relatório de AIR, a documentação a ser disponibilizada aos interessados para a realização de consulta ou de audiência pública, caso o conselho diretor ou a diretoria colegiada decida pela continuidade do procedimento administrativo.
§ 5º Nos casos em que não for realizada a AIR, deverá ser disponibilizada, no mínimo, nota técnica ou documento equivalente que tenha fundamentado a proposta de decisão.
Lei da Liberdade Econômica (Lei n.º 13.874/2019)
CAPÍTULO IV
DA ANÁLISE DE IMPACTO REGULATÓRIO
Art. 5º As propostas de edição e de alteração de atos normativos de interesse geral de agentes econômicos ou de usuários dos serviços prestados, editadas por órgão ou entidade da administração pública federal, incluídas as autarquias e as fundações públicas, serão precedidas da realização de análise de impacto regulatório, que conterá informações e dados sobre os possíveis efeitos do ato normativo para verificar a razoabilidade do seu impacto econômico.
Parágrafo único. Regulamento disporá sobre a data de início da exigência de que trata o caput deste artigo e sobre o conteúdo, a metodologia da análise de impacto regulatório, os quesitos mínimos a serem objeto de exame, as hipóteses em que será obrigatória sua realização e as hipóteses em que poderá ser dispensada.
Observem que tanto a Lei Geral de Agências Reguladoras, quanto a Lei da Liberdade Econômica, determinam que o conteúdo e a metodologia a ser observada na elaboração da AIR serão definidas por regulamento. No caso das agências reguladoras, a operacionalização da AIR deverá, ainda, ser regulamentada nos seus respectivos regimentos internos. Atualmente, a regulamentação do uso da AIR pelos órgãos ou entidades públicas federais é feita pelo Decreto Federal 10.411, de 2020.
À época da sua publicação, este Decreto foi alvo de inúmeras críticas. Para o professor José Vicente dos Santos Mendonça, o decreto tem o mérito de reforçar a importância da racionalidade na atividade regulatória e de organizar o procedimento a ser seguido pela administração pública federal, mas apresenta deficiências relevantes para a sua efetividade prática.
A regulamentação da Análise de Impacto Regulatório na Administração Federal
Entre o procedimento, as exceções e o nada
Por José Vicente dos Santos Mendonça
(JOTA, 01/07/2020. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/reg/a-regulamentacao-da-analise-de-impacto-regulatorio-na-administracao-federal)
“[…]. Mas há dois pontos especialmente problemáticos no decreto.
O primeiro é que ele excepciona demais. Mais do que nos casos óbvios de urgência ou de ato interno, não será preciso realizar AIR “nas hipóteses em que não existam diferentes alternativas regulatórias” (o que talvez só se saiba realizando AIR preliminar), ato destinado a preservar a sustentabilidade financeira ou econômica dos mercados de seguro e previdência (leia-se Susep), dos mercados financeiros, de capitais e câmbio (leia-se Banco Central e CVM), dos sistemas de pagamentos (Banco Central).
Também não será necessária a AIR para ato que “reduza exigências com o objetivo de diminuir os custos regulatórios” – expressão longe de ser autoevidente. O decreto afirma que, nesses casos, será elaborada nota técnica, o que parece ser uma forma insincera de afirmar que será realizada uma Análise de Impacto, só que menor, sem o ônus argumentativo a ela associada.
Claramente esse decreto foi trabalhado na excepcionalidade do Ministério da Economia, que pelo visto acredita que AIR boa é AIR para os outros.
A opção mais crítica da norma, no entanto, é afirmá-la irrelevante. Leia-se o art. 21: A inobservância ao disposto neste Decreto não constitui escusa válida para o descumprimento da norma editada e nem acarreta a invalidade da norma editada.
Em termos de efeitos externos, o decreto é tão-somente um guia, uma orientação, uma sugestão, uma coisinha assim-assim. É bom que a Administração Federal a siga, mas, se não seguir, tudo bem.
Enfim: continuamos mais ou menos como estávamos, só que, agora, há um decreto entre nós.”
Para o autor, o decreto “excepciona demais” a obrigatoriedade de realização de AIR, além de ser generalista e conter linguagem vaga, como ilustra a hipótese de dispensa prevista no art. 4º, VII, que admite a dispensa de AIR para edição de “ato normativo que reduza exigências com o objetivo de diminuir os custos regulatórios”. Quanto à crítica relativo ao art. 21, que na prática torna facultativa a observância do Decreto, André Rosilho compartilha da mesma opinião: “Ao prever que a edição de ato normativo de interesse geral de agentes econômicos ou de usuários de serviços públicos sem prévia AIR não geraria sua invalidade, a norma criou forte desincentivo ao uso de AIRs — se o descumprimento do dever de realizar AIR não gera consequência jurídica alguma, por que gastar recursos (financeiros e humanos) para realizá-la?”[8]
Em sentido contrário, Mariana Mota Prado entende ser positivo o caráter facultativo da AIR, considerando que os órgãos federais não estariam prontos para utilizá-la de maneira adequada e efetiva: “Talvez a ideia de manter a AIR como optativa no Brasil devesse ser celebrada. Pesquisas empíricas mostram que boa parte dos órgãos federais não estão prontos para usar de maneira adequada e efetiva a AIR. Obrigá-los a fazê-lo exigiria alocação de volumosos recursos para treinamento e capacitação de pessoal sem muita clareza dos benefícios que esse investimento traria. [9]
As hipóteses de dispensa de AIR estão previstas no art. 4º do Decreto Federal 10.411, de 2020, transcrito abaixo. Note que algumas hipóteses são estabelecidas com base em conceitos jurídicos indeterminados, como “urgência” e “baixo impacto”, e não há indicação de qualquer critério ou diretriz para caracterizar uma situação como emergencial e para qualificar uma norma como de baixo impacto.
Decreto Federal n.º 10.411/2020
Art. 4º A AIR poderá ser dispensada, desde que haja decisão fundamentada do órgão ou da entidade competente, nas hipóteses de:
I – urgência;
II – ato normativo destinado a disciplinar direitos ou obrigações definidos em norma hierarquicamente superior que não permita, técnica ou juridicamente, diferentes alternativas regulatórias;
III – ato normativo considerado de baixo impacto;
IV – ato normativo que vise à atualização ou à revogação de normas consideradas obsoletas, sem alteração de mérito;
V – ato normativo que vise a preservar liquidez, solvência ou higidez:
a) dos mercados de seguro, de resseguro, de capitalização e de previdência complementar;
b) dos mercados financeiros, de capitais e de câmbio; ou
c) dos sistemas de pagamentos;
VI – ato normativo que vise a manter a convergência a padrões internacionais;
VII – ato normativo que reduza exigências, obrigações, restrições, requerimentos ou especificações com o objetivo de diminuir os custos regulatórios; e
VIII – ato normativo que revise normas desatualizadas para adequá-las ao desenvolvimento tecnológico consolidado internacionalmente, nos termos do disposto no Decreto nº 10.229, de 5 de fevereiro de 2020.
Diante desse cenário, qual tem sido a efetividade prática da AIR na elaboração de normas regulatórias?
Um grupo de pesquisadores da FGV Direito Rio tentou responder a essa questão em uma pesquisa no âmbito da ANVISA dedicada à análise dos três primeiros anos da regulamentação da AIR no Brasil.[10]
Caso ANVISA
Segundo essa pesquisa, a ANVISA se destacou pela dispensa de realização da AIR na maior parte dos atos normativos elaborados no período analisado (abril de 2021 a abril de 2024). O resultado é semelhante ao de um estudo anterior[11], voltado à análise da experiência da ANVISA com o uso da AIR entre 2011 e 2020. Do total de 843 atos normativos analisados no estudo, 56,7% foram editados com dispensa de AIR, sendo que, em 86,2% desses casos, a urgência do tema foi apontada como justificativa para a ausência da análise e impacto. Em pesquisa mais recente, os mesmos pesquisadores[12] apontaram que, nos anos subsequentes à publicação do Decreto Federal 10.411, de 2020, houve um aumento das dispensas de AIR e das hipóteses de inaplicabilidade da AIR na edição de atos normativos pela ANVISA. Por outro lado, houve uma maior diversificação das justificativas apresentadas pela agência para dispensar a AIR, embora a urgência tenha sido a justificativa mais frequente nos atos de dispensa.
A dispensa de realização de AIR, especialmente em razão de emergências, é uma tendência que tem sido observado em diversos países membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), especialmente após a pandemia de COVID-19[13].
Em resposta a esse fenômeno, algumas alternativas têm sido discutidas para flexibilizar o uso da AIR em casos de emergência, como a adoção de procedimentos acelerados ou simplificados, além da exigência de análises posteriores dos efeitos das normas editadas com dispensa de AIR[14]. No Brasil, o Decreto Federal 10.411, de 2020, pretende conferir algum grau de racionalidade no processo de elaboração de normas regulatórias com dispensa de AIR, exigindo a apresentação de notas técnicas para apresentação dos fundamentos da proposta normativa, além da realização de ARR das normas cuja AIR tenha sido dispensada por motivo de urgência.
Decreto n.º 10.411/2020
Art. 4º A AIR poderá ser dispensada, desde que haja decisão fundamentada do órgão ou da entidade competente, nas hipóteses de:
[…]
§ 1º Nas hipóteses de dispensa de AIR, será elaborada nota técnica ou documento equivalente que fundamente a proposta de edição ou de alteração do ato normativo.
§ 2º Na hipótese de dispensa de AIR em razão de urgência, a nota técnica ou o documento equivalente de que trata o § 1º deverá, obrigatoriamente, identificar o problema regulatório que se pretende solucionar e os objetivos que se pretende alcançar, de modo a subsidiar a elaboração da ARR, observado o disposto no art. 12.
§ 3º Ressalvadas informações com restrição de acesso, nos termos do disposto na Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011, a nota técnica ou o documento equivalente de que tratam o §1º e o §2º serão disponibilizados no sítio eletrônico do órgão ou da entidade competente, conforme definido nas normas próprias.
[…]
Art. 12. Os atos normativos cuja AIR tenha sido dispensada em razão de urgência serão objeto de ARR no prazo de três anos, contado da data de sua entrada em vigor.
Mais uma vez, a experiência da ANVISA ilustra os desafios à efetividade do Decreto Federal 10.411, de 2020, especialmente quanto ao objetivo de limitar o uso da dispensa de AIR pelos órgãos ou entidades reguladoras federais.
Dispensas de AIR no Brasil e no mundo: reflexões a partir da prática da Anvisa
Por Natasha Schmitt Caccia Salinas e Lucas Thevenard Gomes
(CONJUR, 08/10/2019. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-out-08/dispensas-de-air-no-brasil-e-no-mundo-reflexoes-a-partir-da-pratica-da-anvisa/)
[…]
Já sobre os atos de dispensa por urgência relacionados à Covid-19, observamos um fato peculiar. Durante a pandemia, a Anvisa adotou uma série de regulações de caráter emergencial com vigência temporária.
Por força do Decreto nº 10.411/20, essas normas regulatórias deveriam ser objeto de estudos de ARR três anos depois, não fosse pelo fato de que a Anvisa aprovou a Portaria nº 162/2021, com alterações, afastando por meio do artigo 57, § 2º, a exigência dessa avaliação ex post para normas de vigência temporária, que corresponderam à maior parte das normas relacionadas à Covid-19.
Embora a solução dada pela Anvisa de afastar a avaliação ex post de normas emergenciais de caráter temporário ainda não tenha sido, pelo nosso conhecimento, contestada nos tribunais, entendemos ser essa decisão equivocada por dois motivos.
Primeiro, porque os efeitos de uma norma temporária podem ter uma duração longa, muito mais longa do que a duração da norma provisória. Em segundo lugar, porque crises sanitárias têm se tornado cada vez mais recorrentes, e as medidas adotadas pela agência para confrontar a Covid-19 poderão ser úteis em diversos outros contextos.
Os achados dessas pesquisas mostram que os casos de dispensa de AIR são hoje um ponto crítico para a efetividade da política de melhoria regulatória. As hipóteses de dispensa previstas pelo Regulamento da AIR estão dotadas de ambiguidades que, na prática, dificultam a implementação efetiva do instrumento.
Uma definição mais precisa de quando as dispensas são apropriadas é crucial para equilibrar a necessidade de respostas rápidas com os benefícios de análises e avaliações de impacto adequadas.
O Tribunal de Contas da União (TCU)[15] realizou uma pesquisa junto aos órgãos federais legalmente obrigados a elaborar AIRs. O diagnóstico sobre a implementação do Decreto Federal 10.411, de 2020 revela números que demonstram sua baixa efetividade: 68% das instituições consultadas não tinham conhecimento da existência de orientação ou coordenação para implementação do decreto, por algum órgão ou entidade, no âmbito do poder executivo federal; 75% entendem que não possui pessoal qualificado para conduzir uma AIR; e 69% entendem não possuir dados ou informações necessárias para realização do processo.
Em sentido similar, uma reportagem publicada pelo Jota demonstra que, quando entrou em vigor a obrigatoriedade do Decreto, havia na administração federal uma disparidade grande de conhecimento sobre o que seria uma análise de impacto regulatório:
Análise de Impacto Regulatório ainda engatinha em boa parte das agências reguladoras
Por Carolina Ingizza
(JOTA, 18/10/2023. Disponível em: https://www.jota.info/executivo/analise-de-impacto-regulatorio-ainda-engatinha-em-boa-parte-das-agencias-reguladoras)
[…]
“‘Algumas agências estavam experimentando desde 2007, outras desde 2018, mas muitos outros órgãos da administração direta nunca tinham feito uma análise ou capacitado seus gestores’, diz Sabrina Favero, diretora do departamento de política regulatória do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC).
Segundo a diretora, a maior parte das agências reguladoras está avançada, com destaque para Anatel, Anvisa, Aneel e Anac. Já as menores, por conta do orçamento e número de servidores, não estão tão engajadas no uso da ferramenta. Na Esplanada, saem na frente o Ministério da Agricultura e o da Saúde. ‘Na administração direta ainda temos o problema que poucos órgãos se veem como reguladores, apesar de estarem regulando”, diz Favero.
Levantamento feito pela Controladoria-Geral da União (CGU) entre 2019 e 2022 constatou que as oito agências reguladoras federais do setor de infraestrutura (Ana, Anac, Anatel, Aneel, Antt, ANTAq, ANM e ANP) já usam AIR. Segundo o secretário federal de controle interno da CGU, Ronald da Silva Balbe, a obrigatoriedade legal acelerou a implementação da ferramenta nessas instituições.”
Enfim, a AIR está prevista no plano legal, foi regulamentada pelo Decreto 10.411, de 2020, e foi publicada uma série de guias e documentos gerais sobre o tema para orientar a utilização desse instrumento na ordenação pública. Contudo, os estudos indicam que a plena implementação da AIR ainda é uma realidade distante para a Administração Pública brasileira.
O uso de conceitos jurídicos indeterminados e a ampliação das hipóteses de dispensa de AIR parece ter contribuído para a redução do seu uso pelas agências reguladoras federais. Além disso, a efetividade do uso da AIR no Brasil parece depender de um conhecimento prévio sobre os limites, capacidades institucionais e necessidade de cada órgão ou entidade reguladora, além da disponibilidade de instrumentos de coleta e análise dos dados necessários à realização de AIR. Por fim, a transformação desse cenário passa pela realização de investimentos em capacitação profissional dos agentes públicos envolvidos na atividade regulatória, de modo a viabilizar a aplicação do conhecimento consolidado na rotina administrativa.
Novos projetos podem ajudar na implementação de instrumentos de melhoria da governança regulatória, como o Projeto de Lei (PL) 4.888, de 2019, de autoria dos deputados federais Alessandro Molon e Eduardo Cury[16]. O PL obriga os entes federativos e conselhos profissionais a realizarem revisões constantes das normas de ordenação pública, com o objetivo de reduzir tanto a quantidade dessas normas quanto os custos para a sociedade, sem comprometer suas finalidades públicas (art. 2º, caput, e V a VII). Para tanto, o PL determina a edição de decreto, em cada ente da Federação, com o estabelecimento de metas de redução do estoque regulatório e dos custos da ordenação pública, bem como a definição de critérios para uniformizar a organização temática do estoque acumulado de normas (art. 2º, § 1º, I e II).
Conforme veremos a seguir, as experiências do INMETRO e da ANM com a AIR reforçam a percepção de que esse instrumento não tem sido utilizado na forma idealizada pela legislação federal.
Caso INMETRO
No Brasil, a regulação de determinados assuntos ou atividades não é uma exclusividade das agências reguladoras. Uma série de outras entidades públicas exercem atividade regulatória, como é o caso do Instituto Nacional de Metrologia (INMETRO). O estudo elaborado pelo Núcleo Público da Escola de Direito da FGV Direito SP + sbdp[17] analisou a utilização, pelo INMETRO, de instrumentos de melhoria da governança regulatória de natureza retrospectiva — ou seja, direcionados à revisão do estoque regulatório, para cumprimento do Decreto Federal 10.139, de 2019 (decreto do “revogaço”). Como mencionado, esse decreto determinou a revisão e a consolidação do estoque regulatório (atos normativos inferiores a decreto) de órgãos e entidades da administração pública federal direta, autárquica e fundacional.
A pesquisa revelou que o esforço do INMETRO para rever seu estoque regulatório levou a uma redução de 70% dos atos normativos ligados a programas de conformidade (caiu de 491 para 145 atos), via revogação e consolidação. No entanto, foram identificadas dificuldades quanto ao uso de instrumentos voltados à melhoria da regulação. Durante todo o período dos trabalhos de revisão do estoque regulatório, não houve, por exemplo, um único caso precedido de AIR. A consulta pública foi usada com maior frequência, embora, em muitos casos, o instrumento parece ter sido manejado com o intuito de compensar a ausência da AIR. De modo geral, a percepção é de que o déficit de pessoal e a limitação da estrutura interna do INMETRO — problemas apontados nos próprios processos administrativos de revisão de atos normativos — condicionaram o órgão a adotar decisões menos onerosas do ponto de vista operacional e institucional.
Em determinadas situações, a AIR foi considerada inaplicável. Nesses casos, é comum que o processo administrativo de revisão ou consolidação da norma sequer mencione o instrumento. Trata-se, por exemplo, das hipóteses de edição de atos “que visem a consolidar outras normas sobre matérias específicas, sem alteração de mérito” (§ 2º, VI, do Decreto 10.411, de 2020). Em outras situações, nas quais a AIR seria aplicável, sua realização foi formalmente dispensada, mediante a devida justificativa apresentada em nota técnica que fundamentou a proposta de alteração do ato normativo. A hipótese de dispensa mais utilizada foi a de “ato normativo considerado de baixo impacto”, conforme autorizado pelo art. 4º, III, do Decreto nº 10.411, de 2020.[18]
No entanto, houve casos em que a AIR, apesar de aplicável, foi dispensada pelo INMETRO sem processo formal de dispensa. Analisemos uma destas situações.
Como visto anteriormente, o Decreto Federal 10.411, de 2020, expressamente determina que a AIR não é aplicável para a edição de atos normativos “que visem a consolidar outras normas sobre matérias específicas, sem alteração de mérito” (art. 3º, §2º, VI). Em função disso, o primeiro passo dos processos administrativos de consolidação no INMETRO consistiu na avaliação de alteração de mérito: se a consolidação de atos normativos importasse em modificação de mérito, a conclusão seria pela necessidade de realização de AIR; por outro lado, se não importasse em modificação de mérito, a conclusão seria pela desnecessidade de AIR.
Ocorre que, diferentemente com o que dispõe o Decreto, o INMETRO determinou, por meio da Portaria INMETRO 244, DE 2020, que apenas processos de consolidação de atos normativos que implicassem em alteração de mérito com impacto esperado sobre o setor regulado ficariam sujeitos a AIR e seriam objeto de processo de revisão específica ao fim do processo regular de revisão. Veja a noma:
Portaria INMETRO 244, DE 2020
Art. 5º, § 1º: “A consolidação de ato normativo que implique em alteração de mérito, com impacto esperado sobre o setor regulado, deverá ser precedida de análise de impacto regulatório, conforme previsto no art. 5º da Lei nº 13.874, de 2019, e no Decreto nº 10.411, de 2020.
§ 2º A consolidação de ato normativo que implique em alteração de mérito será objeto de processo de revisão específico, o qual terá início ao fim do processo de revisão e consolidação sobre o qual versa esta Portaria.”
Ou seja, o conceito de “alteração de mérito”, inicialmente previsto no Decreto 10.411, de 2020, parece ter sido ampliado pela Portaria INMETRO 244, de 2020. O problema prático desta solução é que a consolidação de atos normativos cuja alteração de mérito não causasse “impacto esperado sobre o setor regulado” poderia ter sido enquadrada como hipótese de dispensa da AIR, por se tratar de ato de baixo impacto, conforme previsto no art. 4º, III, do Decreto – o que permitiria sua dispensa formal, mas com a consequente motivação em nota técnica.
Ao criar esta hipótese de inaplicabilidade de AIR, o INMETRO deixou de realizar o necessário processo formal de dispensa, motivado e fundamentado em nota técnica. Houve, assim, equiparação de AIR dispensável (art. 4º, III), que requer que a decisão seja fundamentada pelo órgão ou pela entidade competente; com AIR inaplicável (art. 3º, §2º), cuja formalidade não se faz necessária.
A pesquisa desenvolvida no âmbito do Núcleo Público da FGV Direito SP + sbdp,[19] revelou que, nestas situações, o INMETRO decidiu não realizar AIR. De acordo com a justificativa da própria instituição, os atos de consolidação teriam se limitado a um “mero aperfeiçoamento parcial prévio da regulamentação” – nomenclatura utilizada pelo próprio INMETRO –, o que, em sua avaliação, não geraria o “impacto esperado sobre o setor regulado”, na forma prevista no art. 5º, §1º, da Portaria INMETRO 244, de 2020.
Não houve, nestas situações, dispensa formal e motivada de AIR, como exigido pelo art. 4º, do Decreto Federal 10.411, de 2020, sendo o assunto sequer cogitado nos processos administrativos. É o caso, p. ex., do aperfeiçoamento da medida regulatória referente a panelas metálicas[20], no qual o INMETRO esclareceu que a consolidação “visa[ria] propiciar melhorias incrementais e sanar problemas do regulamento vigente”.[21] Os problemas a que se refere haviam sido constatados já em 2012, após a edição das Portarias INMETRO 419, de 2012, e 398, de 2012, ocasião na qual o INMETRO “recebeu inúmeras consultas para esclarecimento de dúvidas e solicitações de alguns ajustes, oriundos do setor produtivo, de laboratórios e de organismos de certificação acreditados para o produto”. Neste caso, apesar de o INMETRO não ter feito AIR, optou por realizar processo formal de consulta pública para ratificar as melhorias propostas.
Analisando especificamente os casos isolados, fica evidente que a criação desta hipótese de dispensa buscou tornar o processo de revisão do estoque regulatório do INMETRO mais célere e menos oneroso. No entanto, a análise da situação levanta possíveis questionamentos a respeito da validade do ato administrativo:poderia uma portaria do INMETRO (ato administrativo) ampliar o conceito de “mérito administrativo” trazido por uma norma hierarquicamente superior (o Decreto Federal 10.411, de 2020)?
Além disso, o caso INMETRO nos ajuda a refletir sobre diversos aspectos práticos que envolvem a realidade da Administração Pública brasileira e sobre a aplicação dos instrumentos estudados no campo do Direito Administrativo. Vimos que dificuldades práticas – de ordem econômica e operacional – levaram o órgão a fazer escolhas que limitaram o uso da AIR no processo de revisão de seu estoque regulatório. Nesse contexto, editou-se uma portaria que parece ter ampliado o conceito de “alteração de mérito”, aproximando os casos de dispensa de AIR (art. 4º, III) daqueles em que a AIR seria considerada inaplicável (art. 3º, §2º). Essa equiparação pode gerar consequências jurídicas relevantes quanto à análise de legalidade do ato normativo editado pelo INMETRO.
Caso ANM
Neste caso, o estudo elaborado pelo Núcleo Público da Escola de Direito da FGV Direito SP + sbdp,[22] analisou a experiência da ANM com a utilização de instrumentos de melhoria da governança regulatória de natureza prospectiva, a partir da análise do processo de elaboração e revisão da Resolução ANM 122, de 2022.
A pesquisa evidenciou um problema de agenda regulatória, devido à falta de coordenação no âmbito do Poder Executivo (entre administração central e agência reguladora), que impôs um desafio à ANM: editar uma nova resolução sobre fiscalização e sanção no setor minerário (tema sensível e de alta relevância para o setor produtivo), no prazo máximo de 180 dias!
Em síntese, a edição da Resolução ANM 122, de 2022 objetivou estabelecer mecanismos eficazes e proporcionais com vistas a ampliar o grau de conformidade do setor regulado em relação às normas setoriais. O governo federal precisava dar resposta aos então recentes acontecimentos ocorridos com os rompimentos das barragens de mineração de Mariana (2015) e Brumadinho (2019), em Minas Gerais. Em 2020, foi promulgada a Lei 14.066 que aumentou o limite máximo das multas para até R$ 1 bilhão de reais (artigo 17-E, acrescido à lei 12.334/2010) – o limite anteriormente previsto na Política Nacional de Segurança de Barragens era de R$ 3.500,00 – e atribuiu competência expressa à ANM para aplicar tais penalidades.
Código de Mineração (Decreto-Lei 227/1967), com as alterações da Lei n.º 14.066/2020
Art. 63. Sem prejuízo do disposto na Lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, e na Lei nº 12.334, de 20 de setembro de 2010, o descumprimento das obrigações decorrentes das autorizações de pesquisa, das permissões de lavra garimpeira, das concessões de lavra e do licenciamento previsto nesta Lei implica, dependendo da infração:
(…)
§ 1º A aplicação das penalidades de advertência, multa, multa diária, apreensão de minérios, bens e equipamentos e suspensão temporária das atividades de mineração compete à Agência Nacional de Mineração (ANM), e a aplicação de caducidade do título, ao Ministro de Estado de Minas e Energia.
Art. 64. A multa variará de R$ 2.000,00 (dois mil reais) a R$ 1.000.000.000,00 (um bilhão de reais), segundo a gravidade da infração.
Em 2022, o Decreto 10.965, depois complementado pelo 11.197, alterou os dispositivos relacionados ao poder de fiscalização da ANM e estabeleceu o prazo de 180 dias para que a agência editasse uma resolução sobre as infrações e fixasse a gradação das sanções em cada caso, com a determinação dos valores individualizados das multas aplicáveis.
Diante da necessidade urgente de desenvolver procedimentos e regras para a aplicação de sanções, em abril, a ANM incluiu às pressas em sua agenda regulatória para o biênio 2022/2023 (Resolução ANM 105, de 2022) o tema “regulamentação do processo administrativo sancionador”. Ou seja, enquanto a ANM aprovava seu planejamento bienal regulatório, foi surpreendida com a necessidade de criar, em 180 dias, todo um regramento contendo as múltiplas infrações minerárias, a respectiva dosimetria das multas e as regras detalhadas relacionadas ao processo administrativo sancionador.
Obviamente, algumas decisões difíceis foram tomadas. Dado o prazo pouco razoável para que todo o rito regulatório fosse seguido com qualidade, a agência optou por dispensar a AIR, com base em urgência, mesmo ciente de que estava diante de um tema bastante sensível, com significativa complexidade, de alta relevância para a ANM e para toda a sociedade, e que afetaria prontamente os agentes regulados.
Na sequência, a minuta de resolução foi submetida a processo de participação e controle social, primeiramente na modalidade audiência pública. Na fase de análise de contribuições, a ANM verificou a necessidade de dar continuidade ao diálogo com o setor regulado, com vistas à identificação da necessidade de eventuais ajustes e aprimoramentos da resolução. Então, optou por estabelecer no art. 68, da referida norma, um fator redutor de 60% dos valores das multas aplicáveis a infrações consideradas de menor nível de gravidade.
De lá para cá, já no processo de revisão da norma, a ANM recorreu a múltiplos outros instrumentos de participação popular, incluindo uma tomada de subsídios, outras 6 reuniões participativas e, mais recentemente, foi realizada uma nova audiência pública, com sessão virtual no dia 2 de outubro de 2024. Quanto ao fator redutor de 60% dos valores das multas, a cada 6 meses se faz necessária a edição de nova resolução para estender a concessão do benefício, haja vista que as multas, caso fossem aplicadas nos patamares previstos na legislação – de até 1 bilhão de reais –, com base num normativo ainda tão embrionário, inviabilizariam a continuidade das atividades desenvolvidas pelas empresas do setor regulado.
Os principais achados do caso ANM, disponíveis na pesquisa elaborada pelo Núcleo Público da Escola de Direito da FGV Direito SP + sbdp, ajudam a compreender o problema regulatório:
Melhoria da Governança Regulatória: experiências federais
Principais achados do estudo de caso ANM
Sumário executivo do relatório de pesquisa do Núcleo Público da Escola de Direito da FGV Direito SP + sbdp, 2025.
Agenda Regulatória. Idealmente, a agenda regulatória deve, a um só tempo, proporcionar previsibilidade tanto ao setor regulado quanto à sociedade e estabelecer prioridades claras junto ao governo central e outros reguladores. Além de gerar transparência e previsibilidade à produção normativa da agência, a agenda pode facilitar a coordenação entre órgãos e entes governamentais — reduzindo, por conseguinte, os impactos de eventuais sobreposições de iniciativas e conflitos. Contudo, a ANM usou esse instrumento de forma mais restrita. Para a agência, a agenda regulatória parece servir, primariamente, para organizar internamente os trabalhos entre suas equipes, com o objetivo de proporcionar previsibilidade e transparência para a sociedade. Não há indícios de uso da agenda regulatória como instrumento de coordenação entre a ANM e outras agências reguladoras (ou com o Executivo central).
A limitação no uso da agenda regulatória parece estar na origem do principal desafio enfrentado pela agência no processo de elaboração da Resolução 122 (o prazo de 180 dias estabelecido por decreto para a edição de norma sobre a atividade sancionatória da ANM). Se o governo tivesse participado ativamente, compartilhado sua intenção de publicar o decreto ou até mesmo estabelecido um cronograma para o regulador, a agência poderia ter ajustado sua própria agenda regulatória de forma mais coordenada e estratégica.
(…) A valorização da agenda regulatória, com uma abordagem mais integrada e coordenada, poderia mitigar esses problemas. Ao aumentar a colaboração com outros órgãos do governo federal, a ANM teria a possibilidade de otimizar seus processos, evitar sobrecarga de trabalho e assegurar um ambiente regulatório mais previsível e eficiente.
Veja, o caso da ANM evidencia um problema de agenda regulatória e é ilustrativo das consequências negativas de um processo conduzido às pressas, sem a possibilidade de cogitar sobre a utilização de um instrumento de melhoria da governança regulatória tão importante como é a AIR. Outro instrumento que também não foi utilizado neste processo foi a ARR, que é uma ferramenta de melhoria contínua da qualidade regulatória que permite acompanhar e avaliar o desempenho de uma intervenção implementada. Com foi dito, para casos em que atos normativos cuja AIR tiver sido dispensada em razão de urgência, o Decreto 10.411, de 2020, obriga a realização de ARR no prazo de três anos, contado da data de sua entrada em vigor (cf. art. 12). No caso, embora a urgência tenha sido citada como justificativa para dispensar a AIR, a ANM decidiu não se comprometer a realizar a ARR — medida que poderia ter sido útil para compensar a falta de AIR.
Hoje, temos uma norma vigente (a Resolução ANM 122/2022), mas sem eficácia plena, pois necessita de prorrogações periódicas até que seja factível aplicar as sanções, na dosimetria adequada. Para isso, vem se utilizando de inúmeros instrumentos de participação social, na tentativa de colher subsídios que possam ser incrementados numa possível publicação posterior. O estudo demonstra que parece fundamental reconhecer que, ao menos em matéria sancionatória, o processo de elaboração regulatória não deveria ser conduzido de maneira desarticulada ou de modo improvisado.
[1] Dados disponíveis em: https://www.gov.br/economia/pt-br/acesso-a-informacao/reg/arquivos/tomada-de-subsidio-01-2022-v11.pdf. Ver também: Laboratório de Regulação Econômica – Uerj Reg. Desafios para a efetiva implementação da AIR no Brasil. Jota, publicado em 1.2.2023, disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/reg/desafios-para-a-efetiva-implementacao-da-air-no-brasil#_ftn1.
[2] BRASIL. Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços. Secretaria de Competitividade e Política Regulatória. Resultados da Consulta Pública do Custo-Brasil. Setembro/2023. Disponível em: https://www.gov.br/mdic/pt-br/assuntos/noticias/2023/setembro/mdic-define-oito-eixos-de-atuacao-para-reduzir-custo-brasil/resultados_cp_custo-brasil.pdf
[3] SCHMITT, Natasha Caccia Salinas; THEVENARD, Lucas Gomes. The use and exemption of Regulatory Impact Assessment by the National Health Surveillance Agency. Revista Do Serviço Público, v. 72, p. 8-33. Recuperado de https://revista.enap.gov.br/index.php/RSP/article/view/5954. O achados dessa pesquisa inicial foram desenvolvidos, pelos mesmos autores, no artigo intitulado “Dispensas de AIR no Brasil e no mundo: reflexões a partir da prática da Anvisa”, disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-out-08/dispensas-de-air-no-brasil-e-no-mundo-reflexoes-a-partir-da-pratica-da-anvisa/.
[4] Parte das informações foram extraídas dos achados da pesquisa, ainda não publicada, intitulada Melhoria da Governança Regulatória: experiências federais,elaborada pelo Núcleo Público da Escola de Direito da FGV Direito SP + sbdp, realizada com o apoio da FIESP, que analisou a experiência do INMETRO e da ANM com a utilização de instrumentos de melhoria da governança regulatória. A pesquisa foi coordenada pelo por André Rosilho, e teve a participação dos pesquisadores Camila Castro Neves, Francisco de Andrade Figueira, Jéssica Loyola, João Domingos Liandro e Roberto Moraes Dias.
[5] SCHMITT, Natasha Caccia Salinas; THEVENARD, Lucas Gomes, op. cit.
[6] Casa Civil, disponível em: https://www.gov.br/casacivil/pt-br/assuntos/downloads/diretrizes-gerais-e-guia-orientativo_final_27-09-2018.pdf/view.
[7] A ANEEL, por exemplo, disponibiliza alguns modelos de AIR no seu site. Em geral, os relatórios de AIR analisam aspectos como o problema regulatório que se pretende resolver, os atores ou grupos afetados, os objetivos almejados, as experiências internacionais de regulação do objeto em análise e as alternativas de intervenção regulatória e seus possíveis impactos. Para mais informações: https://www.gov.br/aneel/pt-br/centrais-de-conteudos/manuais-modelos-e-instrucoes/air. A estrutura dos relatórios de AIR elaborados pela ANTT seguem estrutura semelhante, passando pela apresentação do problema regulatório, os objetivos desejados com a regulação, as medidas regulatórias disponíveis e a apresentação da ação escolhida e dos seus possíveis impactos. A ANTT disponibiliza modelos de relatório e manuais de AIR, Monitoramento e ARR no seu sie: https://portal.antt.gov.br/saiba-mais-sobre-a-air-e-arr.
[8] Núcleo Público da Escola de Direito da FGV Direito SP + sbdp. Melhoria da Governança Regulatória: experiências federais, op. cit.
[9] PRADO, Mariana Mota. A Análise de Impacto Regulatório deveria ser obrigatória? Jota, coluna Publicistas, publicado em: 26.9.2023, disponível em: https://www.jota.info/colunas/publicistas/a-analise-de-impacto-regulatorio-deveria-ser-obrigatoria.
[10] SCHMITT, Natasha Caccia Salinas et al. Análise dos três anos de Regulamentação da AIR no Brasil. Relatório de pesquisa. Regulação em Números, ago./2024. Disponível em: https://regulacaoemnumeros-direitorio.fgv.br/post/analise-dos-tres-anos-de-regulamentacao-da-air-no-brasil#:~:text=Nos%20tr%C3%AAs%20primeiros%20anos%20de,constru%C3%ADdos%20com%20apoio%20de%20AIR. Acesso em: 13 jun. 2025.
[11] SCHMITT, Natasha Caccia Salinas, & THEVENARD, Lucas Gomes, op. cit.
[12] SCHMITT, Natasha Caccia Salinas, & THEVENARD, Lucas Gomes. Open Exceptions: Why Does the Brazilian Health Regulatory Agency (ANVISA) Exempts RIA and Ex Post Reviews? Journal of Benefit-Cost Analysis, [s. l.], v. 15, n. 1, p. 87–104, 2024. DOI 10.1017/bca.2024.13. Disponível em: https://research-ebsco-com.sbproxy.fgv.br/linkprocessor/plink?id=4828c04d-4c53-3fb8-b9a4-1c2d193b16a4. Acesso em: 4 jun. 2025.
[13] SCHMITT, Natasha Caccia Salinas, & THEVENARD, Lucas Gomes. Dispensas de AIR no Brasil e no mundo: reflexões a partir da prática da Anvisa. Consultor Jurídico. 8/10/2019. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-out-08/dispensas-de-air-no-brasil-e-no-mundo-reflexoes-a-partir-da-pratica-da-anvisa/
[14] Idem.
[15] TCU. Acórdão 2.325/2022. Plenário, rel. Vital do Rêgo, sessão de 19.10.2022.
[16] O projeto de lei está atualmente na Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania da Câmara dos Deputados. A proposição é baseada em proposta acadêmica para a reforma das bases jurídicas da regulação e de sua governança nos âmbitos municipal, estadual, distrital e federal, divulgada em 4 de abril de 2019 e elaborada pelo Núcleo Público da FGV Direito SP + Sociedade Brasileira de Direito Público – sbdp e, sob a responsabilidade dos professores Carlos Ari Sundfeld (FGV-SP, coordenador), Eduardo Jordão (FGV-RJ), Egon Bockmann Moreira (UFPR), Floriano Azevedo Marques Neto (USP), GustavoBinenbojm (UERJ), Jacintho Arruda Câmara (PUC-SP), José Vicente Santos de Mendonça (UERJ) e Marçal Justen Filho (ex-UFPR). A íntegra do projeto de lei está disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1802776&filename=PL%204888/2019.
[17] Núcleo Público da Escola de Direito da FGV Direito SP + sbdp. Melhoria da Governança Regulatória: experiências federais, op. cit.
[18] É o que ocorreu, p. ex., na revogação para desregulamentar a medida regulatória que obrigava a inspeção da adaptação de acessibilidade em veículos de características rodoviárias e urbanas para o transporte coletivo de passageiros. Concluiu-se pela possibilidade de dispensa da AIR, seguido de processo formal e fundamentado pela presidência do Inmetro, porque a revogação teria por objeto atos normativos de baixo impacto (art. 2º, II, c/c 4º, III, do Decreto federal 10.411, de 2020): “Somada à falha regulatória identificada, a contribuição das Portarias referentes à inspeção de adaptação de acessibilidade em veículos urbanos (Portaria Inmetro 260 de 2007) ou rodoviários (Portaria Inmetro 168 de 2008), para o transporte de passageiros, e respectivas Portarias complementares, mostra-se pouco significativa para a solução do problema hoje em dia (Processos 0052600.001369/2021-15 e 0052600.001372/2021-21. Nota técnica 13/2021/Diqre/Dconf-Inmetro, de 15/9/2021).
[19] Núcleo Público da Escola de Direito da FGV Direito SP + sbdp. Melhoria da Governança Regulatória: experiências federais, op. cit.
[20] Inmetro. Processo INMETRO 0052600.022265/2018-31, de 2021.
[21] Inmetro. Nota Técnica 49/2021/Divet/Dconf-Inmetro. Processo 0052600.022265/2018-31, de 24/03/2021.
[22] Núcleo Público da Escola de Direito da FGV Direito SP + sbdp. Melhoria da Governança Regulatória: experiências federais, op. cit.
3. DEBATENDO
- De que forma a regulação pode impactar as nossas vidas? Pense em exemplos do seu dia a dia para ilustrar esse impacto.
- Você acha que é importante avaliar os impactos de uma determinada norma anteriormente à sua edição? Por quê?
- Você acha que é importante avaliar os impactos de uma determinada norma posteriormente à sua edição? Por quê?
- Quais dificuldades ou desafios práticos podem estar envolvidos na utilização de instrumentos como a AIR pelos reguladores brasileiros?
- Quais são os possíveis efeitos práticos da autorização de dispensa de AIR com base em conceitos jurídicos indeterminados?
- Qual o diagnóstico possível para a baixa efetividade do Decreto Federal 10.411, de 2020, que estabelece a obrigatoriedade de AIR na edição de normas por órgãos federais?
- Faz sentido obrigar os reguladores a utilizarem AIR? Quais as vantagens e desvantagens dessa obrigatoriedade? A revogação do art. 21, do Decreto Federal 10.411, de 2020, é benéfica ou onera ainda mais os entes e órgãos federais na edição de suas normas?
- Seria inválido o art. 5º, §§ 1º e 2º, da Portaria INMETRO 244, de 2020, que criou uma nova hipótese de inaplicabilidade de AIR? Na sua visão, a norma ampliou o conceito de “alteração de mérito” previsto no art. 3º, §2º, VI, do Decreto federal 10.411, de 2020?
- A dispensa de AIR com base em urgência para a edição na Resolução ANM 122, de 2022, teria comprometido a análise efetiva dos impactos que a norma causaria no setor regulado? A elaboração de uma ARR posterior teria contornado seus efeitos negativos?
- Você concorda com o diagnóstico de que a agenda regulatória seria um instrumento adequado de coordenação entre os órgãos governamentais? De que forma ela cumpriria esse objetivo?
4. APROFUNDANDO
OECD Regulatory Policy Outlook, 2021.
SAAB, Flávio; SILVA, Suylan. “Qual a qualidade da análise de impacto regulatório elaborada por agências reguladoras do Brasil?”. Revista de Administração Pública – RAP. Rio de Janeiro, n. 56, p. 529 – 549, jul./ago. 2022.
Laboratório de Regulação Econômica – Uerj Reg. Desafios para a efetiva implementação da AIR no Brasil. Jota, publicado em 1.2.2023, disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/reg/desafios-para-a-efetiva-implementacao-da-air-no-brasil#_ftn1