Roteiro de Aula

Por que o Estado contrata servidores temporários?

Entendendo o trabalho não permanente na administração pública

1. CONHECENDO O BÁSICO

Teria o ordenamento jurídico eleito algum regime jurídico como preferível para o pessoal a serviço do Estado? Ou teria conferido autonomia à Administração para escolher o regime de pessoal mais adequado a ser adotado?

Esse tema já foi muito debatido por conta de a Constituição de 1988, em sua redação original, prever que “a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios instituirão, no âmbito de sua competência, regime jurídico único (…) para os servidores da administração pública direta, das autarquias e das fundações públicas” (art. 39, caput).

Qual era o sentido desse dispositivo? A adoção de um regime jurídico único no âmbito de cada ente federado era entendida pela doutrina como uma forma de conferir tratamento igualitário para o pessoal do setor público. Isto é: a previsão de um tratamento jurídico unívoco para os servidores de cada entidade teria por objetivo impedir um tratamento desigual para trabalhadores em condição de identidade.

Mas, para além da questão da unidade, havia dúvida quanto ao regime que deveria ser aplicado igualitariamente a todo o pessoal. Segundo entendimento bastante arraigado, o regime de pessoal permanente teria sido aquele escolhido pelo Constituinte como principal e preferível e, portanto, como o regime elegível a regime único.

Com algumas variações, esse entendimento era que: com a previsão constitucional de regime jurídico único, o regime geral em cada esfera governamental passara a ser o estatutário; esse regime seria o padrão, ou seja, a regra, na administração direta, autárquica e fundacional; isso porque o regime estatutário seria aquele consagrador de garantias necessárias ao desempenho dos cargos públicos, protegido de pressões que possam perturbar a persecução do interesse público.

A regra do regime jurídico único já não existe mais na Constituição. Mas essa visão histórica parece estar estampada, também, nos vários manuais hoje existentes, em que o regime de pessoal permanente tem sido o foco nos capítulos relativos ao pessoal do setor público. É o que se observa, também, quando do uso do termo servidores públicos para designar, de modo genérico, todos aqueles a serviço do Estado.

Apesar da visão existente na literatura, há na realidade uma grande variedade de regimes de trabalho no setor público. São vários os regimes estatutários para os servidores efetivos: o militar, o dos servidores em cargo em comissão, o dos titulares de cargo especial, o dos servidores empregados públicos, os regimes temporários em cada ente da federação, o dos agentes especiais de saúde, o dos notários, os dos bolsistas, dos estagiários etc. O próprio termo servidor público, em sentido restrito, se refere a apenas uma espécie de regime de trabalho específico (o regime estatutário) dentre outros existentes.

Além disso, o pessoal do setor público também é composto pelas pessoas físicas vinculadas a entidades com as quais o poder público, por meio de ajustes, estabelece relações de colaboração em que essas entidades se incumbem de serviços de interesse público que demandam intenso uso de mão-de-obra, frequentemente com recursos repassados diretamente pelo Estado.

Apesar da opinião existente de que o ordenamento jurídico daria preferência à execução de serviços públicos por meio do pessoal permanente, a realidade mostra que, visto de modo mais abrangente, o regime de pessoal não é nem único e nem estatutário.

A gestão de pessoas no setor público, na prática, é marcada pela concorrência de soluções jurídicas variadas. Isto é, a Administração se vale simultaneamente de pessoal permanente e não permanente para a execução dos serviços de interesse público. São soluções de pessoal concorrentes porque, com frequência, pessoal permanente e não permanente desempenham funções análogas. E são soluções muitas vezes divergentes justamente em vista das diferenças intrínsecas entre os regimes de pessoal permanente e não permanente – isto é, em vista das diferenças quanto à perspectiva de permanência no emprego.

A concorrência de soluções variadas na gestão de pessoas no setor público é, hoje, bastante acentuada. Isto é, há efetiva convivência de pessoal permanente e não permanente na execução dos serviços de interesse público.

Para entender essa realidade, a presente aula propõe abordar a questão do trabalho no setor público a partir de um olhar para as contratações temporárias. É oportunidade de apresentar a alunos e interessados um tema tratado de forma tradicionalmente árida, mas de vital importância na oferta de serviços públicos essenciais pelo Estado. A seguir, é sugerido roteiro, com textos relevantes, de modo a auxiliar na condução de novos entrantes no universo do direito administrativo dos recursos humanos.

2. CONECTANDO-SE COM A REALIDADE JURÍDICA E ADMINISTRATIVA

Entender as razões que levam o Estado a contratar pessoal por tempo determinado requer um olhar fora da caixa para o tema o direito administrativo dos recursos humanos. Isto é: servidores públicos não é exatamente um dos assuntos prediletos nos cursos de graduação em direito – nem entre alunos, e nem entre professores. Por consequência, são poucas as pesquisas jurídicas, recentes ou já antigas, sobre o universo das pessoas que fazem o serviço público. Em uma espécie de círculo vicioso, essa escassez de trabalhos jurídicos só faz aumentar o desinteresse pelo tema, que já não é um assíduo frequentador do topo das paradas de sucesso do direito administrativo.

Então como estudar o tema servidores públicos? Sobre isso, vale ler o texto a seguir, publicado na coluna Função Pública, no portal JOTA, uma iniciativa do Núcleo de Inovação da Função Pública, da Sociedade Brasileira de Direito Público (sbdp), que busca justamente conferir novos ares ao importante tema do direito administrativo dos recursos humanos.

Como estudar o tema de servidores públicos?

Pensar o tema a partir de debates reais e atuais é um caminho

Por Ricardo Alberto Kanayama
(JOTA, 15/04/2024 – Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/funcao-publica/como-estudar-o-tema-de-servidores-publicos)

O tema de servidores públicos não é o que causa mais interesse dos alunos nas aulas de Direito Administrativo. Ele não parece ter a mesma centralidade que o ato e o processo administrativo, tampouco a dinamicidade dos temas do controle sobre a administração ou das restrições do Estado sobre a propriedade.

Seguindo os sumários dos manuais da matéria, as aulas sobre servidores públicos compreendem os tipos de agentes e cargos, modos de ingresso e saída, direitos e deveres, questões remuneratórias e disciplinares. Tudo parece estático, sem graça, burocrático – talvez pela noção de que os servidores são a burocracia, o “direito administrativo dos clipes”.[1]

Precisa ser assim?

Recentemente, foi lançado o Curso de Direito Administrativo em ação: casos e leituras para debates (editora JusPodivm/Malheiros), obra coletiva de professores de diferentes faculdades. A proposta é inovar o modo de ensinar o Direito Administrativo. Como o título indica, não se pretende colocar os principais temas da matéria de modo estático, como “palavra final”. Para combater a idealização do direito, é imprescindível buscar a realidade.

O capítulo sobre servidores públicos tem como título “Quem trabalha para as administrações públicas? Desigualdades entre agentes públicos e reformas possíveis”, assinado pelo professor Carlos Ari Sundfeld.

Ele inicia com a ponderação de que não se deve idealizar as regras, de modo que não se pode perder o senso crítico sobre as externalidades que elas podem trazer – desigualdades e ineficiência, sobretudo. Assim, por exemplo, o concurso público, que na teoria é instrumento isonômico e impessoal para contratar as pessoas mais preparadas, mas que pode ser aprimorado para selecionar melhor. Não se deve “sacralizar” o concurso público na forma como o conhecemos hoje.

Textos jornalísticos e de opinião são apresentados como leituras para o aluno se conectar à realidade: como modernizar o concurso público? Como lidar com o problema crônico dos supersalários de alguns agentes, enquanto a grande maioria não ganha mais do que R$ 5.000? É possível que a administração contrate servidores pelo regime celetista? E a contratação temporária é adequada? Como evitar práticas clientelistas na nomeação dos agentes públicos para cargos em comissão? Como ter uma administração pública com mais diversidade em seus quadros?

São questões que estão todos os dias nos meios de comunicação.

Além dos textos, o capítulo traz fragmentos das principais leis e alguns conceitos básicos do tema de servidores públicos, mas sem ser cansativo.

É claro que outras discussões poderiam ter sido levantadas – a questão disciplinar dos agentes públicos ainda é um tema tormentoso e que mereceria aprimoramento nas administrações públicas. Outras abordagens agregariam – a matéria do funcionalismo foi construída sobretudo pelo Supremo Tribunal Federal, o que implica reflexões políticas. Há temas novos que devem entrar na pauta em breve – o impacto da inteligência artificial nas rotinas de trabalho.

Independentemente disso, o capítulo mostra que o tema de servidores públicos está muito longe de ser monótono e secundário no Direito Administrativo. Refletir sobre as pessoas que integram a administração, em qualquer nível – dos cargos de decisão aos cargos da ponta –, é pensar, no fundo, sobre o serviço público que queremos.

E, para isso, é essencial estudarmos o tema de servidores públicos colocando no centro debates atuais e reais. É um caminho desafiador, que se recusa a ser insosso e cômodo. Mas, certamente, mais instigante.


[1] SUNDFELD, Carlos Ari. Direito Administrativo para céticos. 2ª ed. rev. ampl. São Paulo: Malheiros, 2017, p. 147.

Como destacado no texto, é importante estudarmos o tema do direito administrativo dos recursos humanos a partir da realidade. É por isso que, para passarmos, agora sim, ao tema das contratações por tempo determinado, cabe iniciarmos com uma notícia sobre o uso desse instrumento jurídico pelas administrações municipais.

Para economizar, prefeituras ampliam funcionários temporários em 52%

Aumento de profissionais sem vínculo permanente supera o de concursados, e especialistas alertam para riscos

Por Luany Galdeano
(Folha de São Paulo, 15/05/2025 – Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2025/05/para-economizar-prefeituras-ampliam-funcionarios-temporarios-em-52.shtml)

Entre 2013 e 2023, o número de funcionários temporários dos municípios cresceu 52,5%, segundo dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Hoje, 2 em cada 10 servidores públicos nas prefeituras não têm vínculo permanente –o maior patamar em pelo menos dez anos.

A contratação de servidores temporários é prevista na Constituição para casos de excepcional interesse público. Mas, segundo especialistas, o aumento expressivo mostra que essa modalidade tem sido adotada mesmo para funções permanentes, como médico e professor, para equilibrar o aumento da demanda por serviços públicos sem violar a Lei de Responsabilidade Fiscal.

Temporários tornaram-se a categoria com maior crescimento na administração municipal, acima dos concursados, cujo aumento foi de apenas 4% entre 2013 e 2023. Em 11% das cidades brasileiras, mais da metade dos profissionais não têm vínculo permanente.

(…)

Segundo a Lei de Responsabilidade Fiscal, despesas com pessoal nos municípios não podem ultrapassar 60% da receita corrente líquida.

Para Théo Santini, gerente de gestão de dados da FNP (Frente Nacional de Prefeitas e Prefeitos), as cidades enfrentam um aumento na demanda por serviços públicos, cujo custo já não é suprido pelas transferências de estados e do governo federal.

“Com a população envelhecendo, os municípios têm cada vez mais gastos em saúde e assistência, além de mobilidade, principalmente nas cidades médias e grandes. O orçamento se torna mais disputado e o gasto com pessoal fica pressionado, então as prefeituras optam por fazer contratações temporárias.”

Além de chamar a atenção para o crescimento do trabalho temporário nas administrações municipais, a notícia traz uma explicação bastante comum para esse fenômeno: o uso das contratações temporárias tem por objetivo reduzir a despesa com pessoal, sobretudo à luz das limitações impostas pela Lei de Responsabilidade Fiscal.

Mas será que essa é a única (ou pelo menos a principal) explicação para o crescimento das contratações de pessoal temporário nas administrações públicas? Para avançarmos nessa questão é necessário trazermos um pouco mais de conteúdo jurídico para a sala de aula.

Contratação por tempo determinado é um tipo de vínculo contratual com o setor público. Por meio desse instrumento a administração pública contrata por prazo pré-estabelecido agentes para atender a necessidades temporárias de excepcional interesse público. Essa modalidade de contratação está prevista no inciso IX do art. 37 da Constituição Federal, segundo o qual: “a lei estabelecerá os casos de contratação por tempo determinado para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público”.

No âmbito federal, as contratações temporárias são disciplinadas pela Lei 8.745, de 1993, que regula o instituto e prevê hipóteses para a contratação. É útil conferirmos um excerto da lei.

Lei n.º 8.745, de 9 de dezembro de 1983

Dispõe sobre a contratação por tempo determinado para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público, nos termos do inciso IX do art. 37 da Constituição Federal, e dá outras providências.

Art. 1º Para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público, os órgãos da Administração Federal direta, as autarquias e as fundações públicas poderão efetuar contratação de pessoal por tempo determinado, nas condições e prazos previstos nesta Lei.

Art. 2º Considera-se necessidade temporária de excepcional interesse público:

I – assistência a situações de calamidade pública;

II – assistência a emergências em saúde pública;

III – realização de recenseamentos e outras pesquisas de natureza estatística efetuadas pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE;

IV – admissão de professor substituto e professor visitante;

V – admissão de professor e pesquisador visitante estrangeiro;

VI – atividades:

a) especiais nas organizações das Forças Armadas para atender à área industrial ou a encargos temporários de obras e serviços de engenharia;

b) de identificação e demarcação territorial;   

d) finalísticas do Hospital das Forças Armadas;

e) de pesquisa e desenvolvimento de produtos destinados à segurança de sistemas de informações, sob responsabilidade do Centro de Pesquisa e Desenvolvimento para a Segurança das Comunicações – CEPESC;  

f) de vigilância e inspeção, relacionadas à defesa agropecuária, no âmbito do Ministério da Agricultura e do Abastecimento, para atendimento de situações emergenciais ligadas ao comércio internacional de produtos de origem animal ou vegetal ou de iminente risco à saúde animal, vegetal ou humana;    

g) desenvolvidas no âmbito dos projetos do Sistema de Vigilância da Amazônia – SIVAM e do Sistema de Proteção da Amazônia – SIPAM.

h) técnicas especializadas, no âmbito de projetos de cooperação com prazo determinado, implementados mediante acordos internacionais, desde que haja, em seu desempenho, subordinação do contratado ao órgão ou entidade pública. 

i)técnicas especializadas necessárias à implantação de órgãos ou entidades ou de novas atribuições definidas para organizações existentes ou as decorrentes de aumento transitório no volume de trabalho que não possam ser atendidas mediante a aplicação do art. 74 da Lei no 8.112, de 11 de dezembro de 1990;

j) técnicas especializadas de tecnologia da informação, de comunicação e de revisão de processos de trabalho, não alcançadas pela alínea i e que não se caracterizem como atividades permanentes do órgão ou entidade;       

l) didático-pedagógicas em escolas de governo; e

m) de assistência à saúde para povos indígenas e de atividades temporárias de apoio às ações de proteção etnoambiental para povos indígenas; e

n) com o objetivo de atender a encargos temporários de obras e serviços de engenharia destinados à construção, à reforma, à ampliação e ao aprimoramento de estabelecimentos penais; 

Além disso, as contratações por tempo determinado são disciplinadas pelas normas locais de cada estado e município que faz uso do instituto. São milhares de normas, sem um padrão definido, que preveem diferentes regras e hipóteses de uso do trabalho temporário. A título de exemplo, vale conferir norma do Estado do Espírito Santo – que conta com grande uso de temporários na administração.

Lei complementar 809 de 2015 (Espírito Santo)

Dispõe sobre a contratação por tempo determinado pelo Estado do Espírito Santo para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público, nos termos do inciso IX do art. 37 da Constituição Federal e do inciso IX do art. 32 da Constituição Estadual, e dá outras providências.

Art. 1º Para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público, os órgãos da administração direta, as autarquias e as fundações públicas do Poder Executivo poderão efetuar contratação de pessoal por tempo determinado, nas condições e prazos previstos nesta Lei Complementar.

Art. 2º Considera-se necessidade temporária de excepcional interesse público:

I – assistência a situações de calamidade pública; (…)

III -contratação de professor substituto para suprir a falta na respectiva carreira em decorrência: (…)

c) da expansão das instituições estaduais de ensino; (…)

IX – atividades técnicas especializadas decorrentes da implantação de novos órgãos ou novas entidades públicas, da efetivação de novas atribuições definidas para o órgão ou entidade pública, ou do aumento transitório no volume de trabalho; (…)

XII – prestação de serviços públicos essenciais ou urgentes, caso as vagas ofertadas em concurso público não tenham sido completamente preenchidas; (…)

XV – incorporação permanente de leitos ao Sistema Único de Saúde, se decorrentes de expansão motivada por surto epidemiológico.

Os exemplos aqui elencados dão conta de que a legislação prevê diversas hipóteses de uso dos temporários pela administração pública. Mas entender a razão da contratação de temporários pelo Estado, para além das hipóteses previstas em leis específicas, requer um olhar global acerca do avanço do trabalho temporário. Isto é: em quais áreas do setor público os temporários têm crescido? Qual a velocidade desse crescimento? O avanço dos temporários tem ocorrido em substituição a servidores públicos permanentes? São algumas das perguntas que o texto a seguir busca responder.

Servidores públicos concursados serão substituídos por temporários?

Lei Geral dos Temporários pode ajudar na ampliação de serviços essenciais

Por Carlos Ari Sundfeld e Conrado Tristão
(JOTA, 09/06/2025 – Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/funcao-publica/servidores-publicos-concursados-serao-substituidos-por-temporarios)

A Câmara dos Deputados acaba de criar o grupo de trabalho da reforma administrativa, que terá a missão de elaborar propostas voltadas à modernização da gestão de pessoas na administração pública. Nas próximas semanas, o grupo de trabalho precisará tomar algumas decisões importantes. Uma delas será: vale a pena tratar das contratações temporárias? Caso sim, o que fazer a seu respeito?

Contratação por tempo determinado é um tipo de vínculo contratual com o setor público, autorizado pela Constituição para casos de “excepcional interesse público” (art. 37, IX). Os casos que permitem a contratação temporária, bem como suas regras de funcionamento, são previstos nas leis e regulamentos de cada ente subnacional.

A oportunidade para discussões na Câmara surge em momento de apreensão quanto a um possível movimento de substituição dos servidores públicos permanentes – isto é, servidores selecionados por concurso para cargo efetivo com regime estatutário – por pessoal contratado por tempo determinado.

Isso porque, como o noticiário tem repercutido, o número de servidores temporários nos municípios cresceu mais de 50% na última década. Além disso, levantamentos recentes destacam que quase metade dos estados conta com mais professores temporários do que permanentes em suas redes de ensino – sendo que em alguns deles esse número é superior a 70% do quadro docente.

Entender esse movimento, inclusive sob o viés jurídico, parece fundamental para que o Legislativo considere adequadamente o tema das contratações temporárias. Contribuir com debates como esse é o que inspira a coluna Função Pública, uma parceria da Sociedade Brasileira de Direito Público (sbdp) e do Núcleo Público da FGV Direito SP com o JOTA.

E vamos à pergunta do momento: servidores públicos concursados serão substituídos por temporários?

Os números oficiais disponíveis sobre a composição da força de trabalho pública dão conta de que o trabalho temporário é aquele que mais tem crescido no setor público. Tal crescimento, contudo, não parece estar necessariamente ligado à redução de servidores concursados.

A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua, realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mapeia, desde 2012, a força de trabalho pública, em âmbito nacional, a partir de três categorias de vínculos: estatutário, celetista e outros (categoria que abarca os temporários).

Entre 2012 e 2023, houve aumento de 43% nos outros tipos de vínculos (diferentes do estatutário e celetista), que passaram de 22,3% do total de vínculos para 25,7%. Esse crescimento, contudo, parece não ter ocorrido em prejuízo da quantidade de vínculos estatutários – os quais, inclusive, aumentaram em valor absoluto nesse mesmo período, com um crescimento de 6,3%.

Com relação aos Estados e Municípios, de modo específico, as Pesquisas de Informações Básicas, também realizadas pelo IBGE, contam com levantamento da quantidade de pessoas ocupadas nas administrações por tipo de vínculo, classificados em: servidores estatutários, regidos pela Consolidação das Leis do Trabalho, somente comissionados, estagiários e pessoal sem vínculo permanente.

Nos Estados, entre 2012 e 2023, a quantidade de pessoal sem vínculo permanente aumentou em 58,3%, passando de 14,5% para 23,2% do total de vínculos. Aqui, essa mudança, de fato, foi acompanhada por uma redução de 14,4% no número de vínculos estatutários – o que parece contrastar com a tendência nacional de ocupação do setor público apontada pela PNAD Contínua.

O que parece explicar a tendência nacional é que, nesse mesmo período, nos Municípios (que concentram a maioria dos vínculos de trabalho públicos), o crescimento de 62,8% no número de pessoal sem vínculo permanente (que passou de 17,1% a 23,8% do total) foi acompanhado, agora sim, por crescimento também no número de vínculos estatutários – ainda que pequeno, de 5,2%.

Essa tendência geral de crescimento do número de temporários com manutenção, e até crescimento, do número de servidores efetivos parece se confirmar, inclusive, em áreas conhecidas pelo amplo emprego de temporários, como a educação.

Por meio do Censo Escolar, o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) tem mapeado sistematicamente, desde 2011, a composição da força de trabalho docente na educação básica, classificando o pessoal em: efetivo, temporário, terceirizado e celetista.

Em âmbito nacional, entre 2011 e 2024, o número de docentes temporários aumentou em 65,2%, passando de 28,6% para 41,9% do total de docentes. Nesse mesmo período, apesar das prováveis aposentadorias e desligamentos por outras razões, a quantidade de docentes efetivos permaneceu praticamente constante, com pequena redução de 4,8%.

Nas redes estaduais, contudo, o aumento de 49,7% no número de docentes temporários, que passaram de 31,7% para 49,1% do total, foi acompanhado por considerável redução da quantidade de docentes efetivos, de 30,3%.

Já na educação básica municipal (que concentra a maioria dos alunos), houve aumento tanto do número absoluto de docentes temporários quanto de docentes permanentes. A quantidade de docentes temporários cresceu em 76,6%, passando de 25,4% para 35,4% do total, e a quantidade de docentes efetivos teve o ligeiro aumento de 5,9%.

Os números oficiais sobre ocupação no setor público parecem sugerir que o aumento no uso do trabalho temporário pela administração, na atualidade, está mais associado a um esforço de expansão na oferta de serviços públicos de excepcional interesse público do que à substituição de servidores públicos concursados.

Os números mostram que, se por um lado o trabalho temporário parece não apresentar ameaça geral e sistemática a outros tipos de vínculos, por outro, ele já é imprescindível para a prestação de serviços públicos que a Constituição busca universalizar. E isso precisa estar claro nas discussões sobre possíveis reformas administrativas.

É por isso que precisamos de uma Lei Geral dos Temporários. Seu objetivo não seria incentivar a substituição de efetivos por temporários. Seria, bem ao contrário, aumentar a segurança, a qualidade e a eficiência em sua utilização, nos casos em que os temporários têm se mostrado importantes.

Além disso, o objetivo seria ter regras nacionais diretas e claras para evitar desvios no uso dessa modalidade de vínculo (um exemplo de desvio tem sido a sucessiva prorrogação dos vínculos temporários, transformando-os em permanentes de fato).

Em terceiro lugar, o objetivo seria valorizar os trabalhadores envolvidos, tornando certa a garantia de direitos básicos como férias e licenças maternidade, que por vezes são negados em algumas administrações.

Por fim, um elemento fundamental: a lei teria de implantar, em escala nacional e de modo integrado, soluções para a ampla transparência de todas essas contratações, sem o que será difícil avançar na troca de experiências, no aprimoramento dessas contratações e mesmo no controle de legalidade.

Aproveitando o ensejo do último texto, vale mencionar que, quando pensamos no direito público dos recursos humanos, é fundamental pensarmos nas várias possibilidades de melhoria. Isso se aplica, também, para as contratações temporárias. É por isso que, para concluir o panorama de aula sobre o tema, vale destacarmos algumas das propostas para a melhoria dessa modalidade de contratação, desenvolvidas pela sbdp em parceria com o Movimento Pessoas à Frente.

Em defesa de uma lei nacional de contratações temporárias

Por Sociedade Brasileira de Direito Público e Movimento Pessoas à Frente

E O QUE ESSA NORMA GERAL NACIONAL DEVE PREVER?

1. Hipóteses de contratação por tempo determinado para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público aptas a satisfazerem as necessidades atuais da administração pública e assegurarem o uso desse tipo de contratação;

2. Conjunto mínimo de direitos aos agentes especiais temporários, que resguardem, pelo menos, direitos já assegurados pela Constituição Federal (como licença-maternidade, estabilidade da gestante, 13º salário, recolhimento de FGTS proporcional ao tempo trabalhado e vínculo ao regime geral de previdência social);

3. Salvaguardas quanto à transparência no uso das contratações temporárias, por meio da previsão de deveres de acompanhamento, avaliação, medição, comparação e divulgação de resultados pela administração pública;

4. Processo seletivo simplificado, no qual o gestor público tenha liberdade para desenhar suas etapas, havendo segurança jurídica para a realização de procedimentos mais modernos e desvinculados de formalismos que não agreguem qualidade ao processo;

5. Possibilidade de realização do processo seletivo total ou parcialmente à distância, bem como de inclusão de fase final consistente em dinâmicas ou entrevistas eliminatórias;

6. Cadastro permanente de pessoas habilitadas para a contratação temporária como resultado de processos seletivos simplificados, de modo que, quando se mostrar necessária, a administração já disporá de lista de habilitados para serem contratados por tempo determinado;

7. Medidas para evitar a pessoalidade na escolha do contratado nos casos de contratação direta (em que não há processo seletivo simplificado), como as previstas na Lei das Estatais (art. 17, § 2º) e na Súmula 13 do STF (que veda o nepotismo);

8. Vedação ao acúmulo da condição de agente especial temporário com outro de qualquer natureza (político, servidor público, ainda que em cargo em comissão, ou empregado público).

9. Possibilidade de uso da contratação temporária para atender às necessidades públicas de transição demográfica diretamente vinculadas à implantação, continuidade, transformação e qualidade dos serviços sociais, como educação e saúde; e 10. Incentivo ao experimentalismo jurídico responsável, no sentido de as medidas inovadoras de gestão pública estarem sujeitas a avaliação constante, para saber se devem ser mantidas ou não.

3. DEBATENDO

A leitura do material proposto nos convida a algumas reflexões acerca do uso pelo Estado da contratação de servidores temporários, que consolidam e amplificam as principais questões jurídicas envolvidas nesse tema:

  1. Escolha um exemplo de contratação temporária e pesquise sobre ela. Você consegue apontar as diferentes normas (legislativas, administrativas e judiciais) que condicionam o uso dessa contratação por tempo determinado?
  2. Com base no mesmo caso escolhido para a questão anterior, você consegue pensar nas razões favoráveis e desfavoráveis ao uso da contratação temporária pela administração?
  3. Caso a contratação temporária não fosse juridicamente possível para o caso escolhido, como a administração poderia buscar a satisfação do interesse público envolvido?
  4. As propostas envolvidas em uma lei nacional para as contratações temporárias parecem atender às necessidades de aprimoramento identificadas? Que outras diretrizes seriam importantes?
  5. Você consegue pensar em outros exemplos de uso do trabalho não permanente para a oferta de serviços públicos essenciais? Quais?
  6. A partir dos exemplos pensados para a questão 5, você consegue identificar as normas relevantes que disciplinam o uso daquele tipo de trabalho não permanente? Aponte razões favoráveis e desfavoráveis ao seu uso.
  7. Qual a sua visão sobre a legitimidade jurídica do uso de formas de trabalho não permanente pelo Estado para atendimento de necessidade de interesse público?

4. APROFUNDANDO

PEREIRA, Anna Carolina Migueis. Servidores públicos no Brasil: Lições do institucionalismo para a compreensão e a transformação do regime jurídico da função pública. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2023.

SUNDFELD, Carlos Ari. Quem trabalha para as administrações públicas? Desigualdades entre agentes públicos e reformas possíveis. In: _______; JORDÃO, Eduardo; MOREIRA, Egon Bockmann; MARQUES NETO, Floriano de Azevedo; BINENBOJM, Gustavo; CÂMARA, Jacintho Arruda; MENDONÇA, José Vicente Santos de; JUSTEN FILHO, Marçal; PRADO, Mariana Mota; MONTEIRO, Vera. Curso de direito administrativo em ação: Casos e leituras para debates, São Paulo: Editora JusPodivm, 2024.

TRISTÃO, Conrado. Fim da história para a gestão de pessoas no setor público? O uso do trabalho não permanente como estratégia permanente de gestão de pessoas pelo Estado. Tese de Doutorado – 208 f. Escola de Direito de São Paulo – Fundação Getulio Vargas. 2024.

PIETRO, Maria Sylvia Zanella Di; MOTTA, Fabrício (org.). Administração pública e servidores públicos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015.

ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. Princípios constitucionais dos servidores públicos. São Paulo: Saraiva, 1999.